90 años de arte según O Globo

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En Contexto
El 29 de julio de 1925 el periodista brasilero Ireneu Marinho lanzó el periódico O GLOBO. Falleció pocos meses después y su hijo Roberto lo convirtió en el principal conglomerado de medios de su país. Hoy el Grupo es propietario de los diarios O Globo, Extra, Expresso y otras 11 publicaciones entre diarios y revistas. Posee cinco canales de tv abierta en las principales ciudades y una red de 105 estaciones asociadas. Su historia es contada en propia voz en http://memoria.oglobo.globo.com/

Milhões de melodias nos 90 anos do GLOBO

Não é por acaso a proximidade geográfica entre a sede do GLOBO e a Pequena África, região central do Rio consagrada como o berço do samba. Há 90, 100 ou cento e poucos anos, tanto o jornalismo quanto a música popular eram atividades malvistas — com desvantagem para os batuques da turma de Tia Ciata, um literal caso de polícia naquela época. Sendo assim, a música aparecia discretamente nas páginas do jornal em seu início, em meio às histórias da cidade, às decisões governamentais e ao que acontecia pelo mundo — alguns dias depois, na velocidade do telégrafo, claro.

Variedade de ritmos e gerações

Figuras como o maestro Heitor Villa-Lobos, a pioneira Chiquinha Gonzaga e, ainda Pixinguinha, Ismael Silva e Donga começaram a aparecer nas páginas de O GLOBO logo nos primórdios da publicação, refletindo o gosto popular. Logo o jornal percebeu a importância do carnaval, nos folguedos e na cultura, e o repertório de sambas e marchinhas passou a ser discutido por profissionais e críticos.

Em tempos pré-internet, era natural que a música brasileira fosse mais retratada pelo GLOBO do que a estrangeira — o que não se sabia era que, mesmo na idade contemporânea, o Brasil ainda seria um dos poucos países a consumir mais as melodias próprias do que as estrangeiras. Tudo isso está, por exemplo, na carreira de Carmen Miranda, a Brazilian Bombshell, primeira popstar saída do Terceiro Mundo, ainda nos anos 1940, e sua morte prematura, que reuniu, segundo o jornal, 100 mil pessoas em um cortejo fúnebre pelo Rio. A figura de Carmen, para muito além da música, seria uma influência permanente na cultura brasileira, da Tropicália ao cinema.

Os Beatles — que um crítico do GLOBO chegou a tachar de banda sem futuro —, a era dos festivais e o início do que depois se convencionou chamar MPB ainda passariam pelo jornal. A bossa nova, que voltaria a dar ao Brasil o orgulho motivado por Carmen, da conquista do mundo (não sem contestação, como se vê na cobertura do histórico concerto dos brasileiros no Carnegie Hall, em 1962, que gerou praticamente um incidente diplomático), esteve presente em figuras como Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim. E segue nas páginas até hoje, com pioneiros como João Gilberto e seus herdeiros, familiares ou musicais.

Os setentões multimídias Caetano Veloso, Gilberto Gil (esses tão contemporâneos que, em plena edição de 90 anos, aparecem como notícia do dia, na página 9, apresentando-se em Israel) e Chico Buarque, ao longo dos anos, extrapolaram o status de músicos, tornando-se ícones da produção cultural e política brasileira como um todo.

Depois de décadas de notícias musicais por páginas diversas do jornal, o Segundo Caderno foi finalmente criado em 1984, uma editoria específica para a cultura e o entretenimento. Na ocasião, a ditadura militar chegava ao fim (o que aconteceu em janeiro de 1985, durante o primeiro Rock in Rio, quando Cazuza clamava o dia a nascer feliz) e o rock brasileiro da Blitz, RPM e outros conquistava o país. A liberdade política se refletiu na cultura e, principalmente, na música, no saudável caldeirão que se vê a seguir e no dia a dia do jornal. Em 90 anos, muitas melodias.

‘Bombshell’: A gigante notável

Carmen Miranda era um fenômeno em diversos aspectos. A primeira popstar global da música brasileira — antecipando-se em pelo menos 30 anos ao jamaicano Bob Marley, consagrado como o “primeiro astro do Terceiro Mundo” —, nascida em Marco de Canaveses, no Porto, Portugal, em 9 de fevereiro de 1909 teve sua imagem vestida de baiana viralizada (quando esse verbo estava longe de existir, claro) no início dos anos 1940, e em 1946, foi a mulher que mais ganhou dinheiro nos Estados Unidos — um total de US$ 201.458. O GLOBO acompanhou a carreira da Pequena Notável (com as dificuldades típicas da época, a partir de sua ida para os EUA, no fim da década de 1930) de forma entusiástica. “Carmen Miranda virá ao Brasil em 1951”, dizia uma manchete de dezembro do ano anterior. Ela acabou vindo apenas em 1954, em difícil fase pessoal e artística, lutando contra o vício em barbitúricos. Sua permanência no Copacabana Palace (onde passou quatro meses hospedada, em tratamento) foi noticiada discretamente, em ocasiões como a de “Hollywood no Copa”, da coluna social de Ibrahim Sued, quando a diva participou de uma reunião de astros no hotel.

Não totalmente recuperada, Carmen voltou aos EUA em abril de 1955. Em agosto, veio a notícia de sua morte, aos 46 anos. “Perdeu o Brasil a maior intérprete de sua música popular”, dizia o jornal do dia 6, listando em seguida as chamadas que ocupariam boa parte da página com o obituário:

“Carmen Miranda faleceu ontem de um ataque do coração, em sua residência de Beverly Hills — Os últimos momentos da grande ‘vedette’ na palavra de seu marido, o produtor David Sebastian, para O GLOBO — Preparava-se para voltar ao Brasil no próximo ano — A trajetória da ‘pequena notável’ e sua consagração artística”.

“A morte de Carmen Miranda, ocorrida ontem, em Los Angeles, repercutiu dolorosamente em todo o País, que tinha na grande sambista a representante máxima de sua música popular. Foi depois do aparecimento de Carmen, realmente, com seu jeito peculiar de cantar, de interpretar os nossos ritmos, que as melodias brasileiras lograram firmar-se no estrangeiro, notadamente nos Estados Unidos, onde viveu boa parte de sua vida, conquistando assim os seus maiores sucessos”. Os problemas de saúde que acabaram por matá-la eram, finalmente, abordados, ainda que de modo discreto, na legenda de uma imagem: “Esta é uma das fotos da visita de Carmen Miranda ao Rio, este ano. Depois de restabelecida, estava ela no Vogue quando posou com seus velhos amigos Silvio Caldas e Ary Barroso, para O GLOBO”.

A cobertura foi extensa na semana que se passou entre a morte, a chegada do corpo e o funeral, que reuniu uma multidão calculada, à época, em 100 mil pessoas, sob chuva, no Cemitério de São João Batista.

“Emocionantes os funerais da inesquecível intérprete da nossa música popular”, diz uma das manchetes. «Durante toda a madrugada do sábado, quando seria presumível a diminuição do número de pessoas a visitar o corpo de Carmen Miranda, exposto em câmara ardente no ‘hall’ da Câmara Municipal, as filas não pararam um instante sequer. Pessoas de todos os níveis sociais, côr e idade, procuravam ver, pela última vez, aquela que, com sua arte, lhes havia proporcionado tantos momentos de alegria”.

Entre Chiquinha e Pixinguinha

“Tirando do olvido o hymno nacional”. A manchete na primeira página do GLOBO de sexta-feira, dia 30 de outubro de 1925 (no canto inferior direito, mas ainda assim com bom destaque), era rara: as artes ocupando um lugar importante, dividindo a capa com assuntos mais práticos — o que no jornalismo se convenciona chamar de hard news —, como o funcionalismo público, no relato de uma emocionante visita da União dos Empregados no Commercio aos túmulos de seus benfeitores e amigos, e o noticiário internacional. Naquele dia, Grécia e Bulgária se comprometiam a aceitar o que fosse decidido pela Liga das Nações (antepassada da Organização das Nações Unidas que existiu entre 1919 e 1946), e uma “embaixada de cinco sábios de Moscou” anunciava uma visita à América do Sul.

No meio disso tudo, a compositora e pioneira da música brasileira Chiquinha Gonzaga se dedicava ao Hino Nacional. O “tirar do olvido” em questão não é exatamente musical: a iniciativa da maestrina, junto a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (música e teatro eram praticamente inseparáveis na época), era emprestar destaque à obra (o “olvido” corresponde a “esquecimento”) do compositor Francisco Manoel da Silva, cujo túmulo ela tinha visitado no Cemitério São Francisco de Paula, no Catumbi. O maestro compôs a melodia do Hino Nacional em 1822, e Joaquim Osório Duque Estrada escreveria a letra apenas em 1909. Ao fim da notícia sobre a iniciativa de Chiquinha de recuperar o túmulo do compositor, bem-sucedida com a ajuda da SBAT, da qual ela era membro, uma nota curta anunciava um torneio de polo entre argentinos e chilenos. O espaço no jornal não podia ser desperdiçado.

Naqueles primeiros anos do GLOBO, apenas figuras como Chiquinha e o maestro Heitor Villla-Lobos conseguiam eventual espaço nas páginas do jornal, ao lado dos espetáculo musicais (na seção “O Globo no Theatro”) e de eventuais visitas de artistas estrangeiros à cidade. A principal forma de a música popular chegar ao jornal era o carnaval, sempre coberto de forma generosa. Em janeiro de 1935, uma pergunta estampava um título na página 6: “Que cantará o carioca durante o Carnaval?”. A reportagem era uma entrevista com Alfredo da Rocha Vianna Filho, o “Pixinguinha” (grafado com aspas mesmo), então com 37 anos. “O carnaval carioca é, antes de tudo, uma parada estonteante de sons. Para abrilhantal-a, o morro faz descer, vestidos com roupas berrantes, os conjuntos que cantam suas melodias bonitas”, diz o texto, antes de chegar ao maestro. “Ahi foi que resolvemos procurar Pixinguinha. Appellido euphonico que enfeixa vários louros. Appellido que lembra o compasso chocalhado de um choro”. Consagrado primeiro como compositor e músico, Pixinguinha, na ocasião, chegava ao auge no ofício de arranjador. Sem apontar um sucesso para o carnaval que viria, ele sentencia:

— Pelas minhas mãos passaram cerca de 200 producções carnavalescas. Todas bonitas. Em todas esmerei-me o máximo para que, instrumentalizadas, não perdessem nada da belleza. Dentre 200 músicas, é difícil escolher.

Duas semanas depois, outro maestro, Nonô, não ficava em cima do muro: em um hábito que se perpetua até hoje, ele anunciava ao GLOBO “a completa ausência de músicas, este ano, que o carioca vai cantar assoviando, com vergonha de dizer os versos”.

Pelo menos “Grau dez”, clássico de Lamartine Babo e Francisco Alves, e a paródia “Rapsódia lamartinesca” sobreviveram ao tempo, apesar das previsões pessimistas do maestro Nonô, e são cantadas no carnaval 80 anos depois de compostas.

Contemporaneidade nas páginas do Rio Fanzine

A seção Rio Fanzine, criada por Ana Maria Bahiana em 1986 e comandada por Carlos Albuquerque (crítico que até hoje milita no Segundo Caderno) e Tom Leão a partir dos anos 1990, foi a porta de entrada do jornal para a idade contemporânea da música. Ainda antes da internet (que depois seria uma importante aliada, além de ser a principal porta de entrada do leitor mais jovem para o jornal), a dupla mergulhava na cultura pop, com colaborações de artistas e pessoas antenadas com a cultura alternativa em geral, muito humor e uma proposta gráfica totalmente livre.

— Em tempos pré-internet, o Rio Fanzine servia como uma importante passagem entre a cultura subterrânea e o mainstream, numa época em que os canais alternativos eram bem raros. Éramos, como sugeria o nome, como um fanzine inserido em um grande jornal. E nossa ideia era, de alguma forma, tornar o underground maior — define Albuquerque.

Bandas que se tornariam importantes no rock brasileiro dos anos 1990 apareceram pela primeira vez no Rio Fanzine, como o Skank e O Rappa. “No clube da esquina tem uma banda de reggae tocando. É o Skank, o primeiro grupo a levar a linguagem moderna do dancehall para Minas Gerais. Mas não imagine um bando de garotos usando dreadlocks, com uma páia de cigarro no canto da boca, sentado em cima de um muro e com uma série de causos para cantar”, dizia a reportagem de 20 de setembro de 1992, estampando foto dos jovens Samuel, Haroldo, Lelo e Henrique.

Além de quadrinhos, cinema e qualquer assunto relativo à cultura pop que os editores achassem relevante, o Rio Fanzine — que, entre outras, começou a levar para as páginas cenas como a do funk, do hip-hop e da música eletrônica no Rio e no Brasil — teve a percepção de olhar o próprio país, antecipando uma valorização de elementos da cultura nacional hoje maciçamente presentes na música e na cultura contemporâneas. Alguns exemplos são o samba, a MPB e os ritmos regionais absorvidos por artistas diversos como a Nação Zumbi, rappers de várias regiões e a atual badalada cena da música paraense.

O Rio Fanzine — e, hoje, sua herdeira, a Transcultura, seção publicada às sextas-feiras no Segundo Caderno por colaboradores que unem música a moda, games, comportamento e outros assuntos — ajudou a dar o tom da cobertura musical do suplemento contemporâneo, em que os medalhões da MPB e do rock se unem a novidades como Flying Lotus e Kamasi Washington, enquanto sucessos populares como o funk carioca são devidamente registrados.

Palcos históricos

Normalmente concentrada na música brasileira, a partir dos anos 1960 a cobertura musical do GLOBO teve de se tornar mais internacional, apesar de alguns protestos nas suas próprias páginas, como na crítica do disco do grupo The Bossa Nova Modern Quartet, lançado em dezembro de 1963.

“Lá vem americanização… Por que ‘The Bossa Nova Modern Quartet’? Para que os discófilos pensem que se trata de um conjunto norte-americano e, assim, o disco venda mais algumas cópias? Puro engano da Musidisc. Bossa nova é um gênero eminentemente brasileiro, e as únicas vezes em que os nossos amigos dos EUA e da Europa gravaram aceitàvelmente foram aquelas em que o baterista era nosso”, vociferava o crítico, que não assinava o texto e acabava por dar a cotação máxima ao disco.

No ano anterior, o histórico concerto da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, não teve boa repercussão, chegando quase a detonar um incidente diplomático. “Lyra vai tentar explicar aos EUA a verdade da ‘bossa nova’”, dizia o jornal do dia 24 de novembro de 1962. “Carlos Lyra, o autêntico ‘papa’ da bossa-nova, que veio a Nova York para o concerto no Carnegie Hall, pretende ficar por aqui ainda alguns dias”

— O meu objetivo — disse Lyra ao GLOBO na ocasião — é esclarecer, tanto quanto possível, o que exatamente é a “bossa-nova”. Já percebi, nos poucos dias que aqui estou, que a confusão em tôrno do assunto é a mesma que se estabeleceu no Brasil e em outros lugares onde nossa música fêz sucesso. Aproveitando a maré, alguns “picaretas” nacionais e estrangeiros estão tomando conta do assunto, deturpando-o e dando ao público norte-americano uma ideia errada do que somos e do que pretendemos.

O show, em 21 de novembro, foi retratado no GLOBO como um fracasso.

“Nossos artistas, ao vivo, não convenceram o público. João Gilberto, cantando sozinho ou acompanhado ao piano por Tom Jobim, parecia inteiramente perdido com o seu fio de voz. Tom Jobim cantou apenas dois números, sendo de todos o que mais agradou, juntamente com Carlos Lyra, que cantou apenas uma vez. Em compensação, Carmen Costa, Bola Sete e um certo José Paulo, que vivem há anos nos Estados Unidos e nada têm a ver com a ‘bossa nova’, fizeram um número típico para enganar marinheiro da Praça Mauá e cantaram quanto quiseram”. Expressões como “desorganização geral” e “espetáculo escolar” estão na cobertura, que gerou uma nota do Ministério das Relações Exteriores, rejeitando a culpa pelo fracasso.

Para crítico, Beatles não durariam

Apesar de toda a resistência, a música estrangeira começou a entrar na pauta. Os Beatles apareciam timidamente em uma foto-legenda em novembro de 1963. “O aeroporto de Londres viveu horas de entusiasmo, há dias, quando os quatro rapazes de Merseyside que integram o quarteto ‘Beatles’ regressaram de uma vitoriosa excursão a Estocolmo”. No ano seguinte, o quarteto era rejeitado em uma crítica, que dizia: “dentro de seis meses, eles estarão mais superados que o cha-cha-cha e o bambolê”.

O rock ganharia lugar mais recorrente no jornal com o estouro da Blitz, a partir de 1982, e, posteriormente, o Rock in Rio, em janeiro de 1985.

— Primeiro o movimento aconteceu no underground, para poucos. Depois, quando esses poucos viraram muitos, as matérias começaram a surgir para muitos mais — lembra Evandro Mesquita, cantor e fundador da Blitz.

O Globo

 

O cinema nos 90 anos do jornal O GLOBO

RIO — A Cinelândia ainda nem era conhecida por esse nome quando O GLOBO começou a circular na cidade, em 29 de julho de 1925 — até aquele ano, apenas o cine Pathé e o Capitólio, na Praça Marechal Floriano, reforçavam o circuito de salas da região. Mas a frequência aos cinemas do Rio, na época, já justificava uma cobertura mais próxima dos bastidores da indústria, local e estrangeira, e de seus lançamentos no circuito. Em suas nove décadas de existência, o jornal assistiu à evolução do consumo de filmes, dos tradicionais espaços físicos, que ganharam ares de verdadeiros palácios na primeira metade do século passado, até a revolução digital, que permitiu disponibilizá-los em diversas plataformas diferentes, chegando à atual era do streaming.

Dos ‘filmadores’ ao século XXI

As transformações tecnológicas vieram acompanhadas de mudanças no comportamento e na semântica também (nos primórdios da atividade, diretores eram tratados como “filmadores”, e faziam films, sem “e”, como no inglês). Tudo devidamente registrado nas páginas do diário, primeiramente na seção O GLOBO no Cinema, publicada no corpo do jornal, mas ainda disputando espaço com outras notícias e anúncios das massas Aymoré ou do lança-perfume Rodo, por exemplo. Com o passar do tempo, a cobertura cresceu. E, em junho de 1984, a cultura ganhou um canto só seu com a criação do Segundo Caderno. Já na primeira edição do novo suplemento, a capa noticiava o lançamento do futuro clássico “E la nave va”, de Federico Fellini.

Entre um momento e outro, o leitor foi informado sobre a repercussão de produções que marcaram época, ou que se transformaram em símbolo dos diversos ciclos que o cinema brasileiro atravessou nas últimas décadas. Não passou despercebida para os articulistas e críticos do jornal, por exemplo, a dificuldade do grande público para assimilar alguns títulos do cinema de vanguarda, nos anos 1930, como o mítico “Limite” (1931), de Mário Peixoto: “Trata-se de um film para iniciados, feito dentro de um subjectivismo integral, para expôr certos aspectos philosophicos da vida, como, por exemplo, que as creaturas vivem com os movimentos limitados no illimitado do universo”, decretou a coluna do dia 11 de janeiro de 1932.

Quando o Bonequinho, o ícone da crítica de cinema do GLOBO, foi criado, em 1938, a Cinédia, primeiro estúdio brasileiro, fundado oito anos antes, já havia produzido seus grandes sucessos de público, como a comédia romântica “Bonequinha de seda” (1936), de Oduvaldo Vianna. Era o início da fase em que o cinema brasileiro tentaria reproduzir o esquema de produção de Hollywood, que teve seu auge nas chanchadas da Atlântida, nos anos 1940 e 50, um gênero solenemente esnobado pela crítica nacional.

— Mas o povo recebeu os filmes dos estúdios de braços abertos. A Gilda de Abreu, estrela do “Bonequinha de seda”, saiu carregada nos braços de estudantes na estreia do filme no Palácio. Era tanta gente na porta do cinema que a multidão acabou atrapalhando a circulação dos bondes na rua em frente à sala — conta Alice Gonzaga, filha de Adhemar Gonzaga, fundador da Cinédia. — O filme ficou cinco semanas em cartaz e só saiu por imposição dos distribuidores americanos, porque o sucesso do brasileiro estava atrasando o lançamento dos filmes deles.

De ciclo em ciclo, o cinema brasileiro chegou ao início do século XXI diversificado em subgêneros, alguns mais bem-sucedidos do que outros, como o “favela movie” e as neochanchadas. O GLOBO acompanhou cada um deles. Veja os destaques a seguir.

Embrafilme, uma era sem final feliz

Criada em dezembro de 1969, durante a ditadura militar (1964-1985), a Distribuidora de Filmes S.A., a Embrafilme, foi o primeiro grande fomentador oficial de filmes do Brasil. Seu surgimento alavancou a produção nacional de 411 títulos nos anos 1960, para 839, na década seguinte. Datam desse período, de forte censura ideológica, grandes sucessos comerciais, como “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, o maior sucesso de bilheteria da história até então, com 10,7 milhões de espectadores, e as comédias dos Trapalhões, como “O Trapalhão nas minas do rei Salomão” (1977), de J.B. Tanko, que vendeu cerca de 5,8 milhões de ingressos. Foi nesse cenário que também floresceu a indústria da pornochanchada, responsável por hits como “A dama do lotação” (1978), de Neville D’Almeida, atraindo 6,5 milhões de marmanjos aos cinemas.

Em março de 1990, o diretor Ruy Guerra se preparava para dar início às filmagens de “Amor e outros demônios”, seu primeiro longa-metragem desde “Kuarup” (1989), quando, no dia 16 daquele mês, o “Diário Oficial” publicou as medidas provisórias do Plano Collor, a reforma econômica mais radical já decretada no país. Entre confiscos de dinheiro e congelamento de preços e salários, o pacote determinava a extinção de várias fundações e organizações estatais, incluindo a Embrafilme. Ao extinguir o órgão, o governo escrevia um final melancólico para um dos períodos mais frutíferos do cinema nacional, e deixava órfãos dezenas de projetos em andamento — como o de Guerra.

— “Amor e outros demônios” era uma coprodução com a Espanha. Com o fim da Embrafilme, o acordo com os espanhóis acabou, e o filme não foi feito. Foi a única vez que recorri ao dinheiro do órgão e, por causa dele, até hoje respondo a um processo por não ter entregado o filme pronto — lembra o cineasta moçambicano, hoje com 73 anos.

A canetada do então presidente Fernando Collor de Mello, representado na secretaria de Cultura (rebaixada de seu status de ministério) pelo cineasta Ipojuca Pontes (“Pedro Mico”, 1987), que defendia pessoalmente a extinção da Embrafilme, derrubou a produção a zero — entre 1990 e 1995 foram feitos apenas 32 títulos. O mercado só começaria a se recuperar, e lentamente, a partir da criação da Lei do Audiovisual, em 1993, que permite que empresas públicas e privadas invistam até 3% do imposto devido na realização de filmes. Longas já prontos à época do decreto presidencial tiveram que buscar caminhos alternativos, como “Dias melhores virão”, de Cacá Diegues.

— Como não tínhamos recebido nada da Embrafilme para distribuí-lo, logo desfizemos o trato com a empresa e montamos um outro formato de exploração comercial — conta Diegues. Na época, devido à crise, decidimos experimentar um lançamento na TV. O filme foi selecionado para a competição do Festival de Berlim e nós o exibimos, no mesmo dia em que ia passar lá, na TV Globo, no horário nobre. “Dias melhores virão” abriu uma nova relação entre o cinema e a televisão brasileiros, só isso já justifica aquela bem-sucedida experiência.

O cineasta era um dos 40 representantes da classe que se reuniram em uma churrascaria do Leblon em torno de cópias do “Diário Oficial” com o anúncio da extinção da Embrafilme. O clima de apreensão foi estampado no título da matéria do GLOBO do dia 17 de março de 1990: “Suspense na tela: cineastas em desespero”. A empresa, no entanto, não era exatamente uma unanimidade entre os realizadores. Em artigo publicado no Segundo Caderno no dia 10 de abril de 1990, sob o título “Embrafilme, mãe ou madrasta?”, o diretor Rogério Sganzerla (“O bandido da Luz Vemelha”, 1968), um dos expoentes do cinema udigrudi (ou marginal), questionava a função do órgão, que considerava “uma autarquia autista, discutível e centralizadora”.

— A decisão pela extinção da Embrafilme foi, de certa forma, uma surpresa. Um grupo de críticos à empresa ganhou espaço junto ao presidente recém-eleito, representado pelo Ipojuca Pontes, que assumiu a secretaria de Cultura, seu colaborador principal, Miguel Borges, e o presidente do Sindicato da Indústria, Adnor Pitanga. Essas tristes figuras descarregaram seu rancor, provavelmente por estarem na lista de preteridos ao longo da história da empresa, e conseguiram promover o obscurantismo na área — afirma Marcos Altberg, diretor de operações da Embrafilme à época de sua liquidação.

«Vilão» não se arrepende

Visto como o grande vilão do episódio, Ipojuca não muda sua posição:

— Um dos grandes feitos da minha vida foi ter ajudado a enterrar a Embrafilme, mesmo antes de assumir a pasta da Cultura. Ela era mantida com a grana do indefeso contribuinte para diluir, sob a forma de filmes ideologizados, a agenda do marxismo cultural de luta de classes no seio da sociedade brasileira — diz o cineasta, que argumenta que o cinema brasileiro conhecera períodos realmente produtivos antes da criação da empresa. — Os ciclos dos pioneiros, dos estúdios e das produtoras devem ser considerados férteis. Eles ajudaram a consolidar sindicatos, laboratórios, cadeias de exibição e prêmios. Tudo isso com a marca de produtores e empresários que corriam riscos e conquistaram público sem as amarras do dinheiro do estado predador e sua burocracia, em geral, corrupta.

‘Carlota Joaquina’, marco zero da retomada

O cinema brasileiro ainda atravessava a ressaca da extinção da Embrafilme quando uma produção independente, dirigida por uma estreante e realizada de forma quase artesanal, reconectou o filme nacional com o público e se tornou um pequeno fenômeno de mercado. Versão satírica da passagem da corte portuguesa pelo Rio do século XIX, “Carlota Joaquina, princesa do Brazil” (1995), da atriz Carla Camurati, encerrou a carreira com 1,4 milhão de espectadores, depois que sua autora resolveu ela mesma distribuí-lo por diversas cidades, ao longo de uma turnê de cinco meses.

— Aqui no Rio, abrimos o filme em quatro salas. Lotou. Depois, fui abrindo o circuito, levei mais quatro cópias para São Paulo, e fui ampliando pouco a pouco o lançamento. A gente tinha uma lista de distribuidores que ficava pedindo cópias. O boca a boca do “Carlota” foi muito forte e, como nem todas as cidades dispunham do filme, criava mais expectativa — lembra Carla.

Estrelado por Marieta Severo e Marco Nanini, o longa-metragem abriu caminho para projetos similares, que recuperam episódios e personagens da História do país. Em fevereiro de 1995, o Segundo Caderno anunciava em sua capa uma série de produções de fundo histórico, como “Guerra de Canudos” (1997), de Sérgio Rezende, com a saga do líder messiânico Antônio Conselheiro, “Baile perfumado” (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, “O que é isso, companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, que recria um episódio da luta armada durante a ditadura brasileira e concorreu ao Oscar de filme estrangeiro, além de “Tiradentes” (1999), de Oswaldo Caldeira, sobre o líder da Inconfidência Mineira.

— Até aquele momento, o cinema estava querendo que cada filme virasse um sucesso, como “Carlota Joaquina”, um longa intuitivo que se tornou um evento. Depois, os eventos começaram a ser filmados. Vamos voltar a fazer isso agora, com a liberação das biografias — aposta Paulo Sérgio Almeida, do portal “Filme B”, especializado em cinema.

‘O pagador’ e o Cinema Novo

Quando tomou conhecimento da vitória de “O pagador de promessas”, filme de Anselmo Duarte derivado da peça homônima de Dias Gomes, no Festival de Cannes, o então primeiro ministro Tancredo Neves distribuiu a seguinte declaração à imprensa: “O acontecimento vem demonstrar o grau de maturidade artística e de fôrça criadora dos nossos escritores, diretores e intérpretes, que colocaram, desta forma, o cinema brasileiro, como as outras artes, no plano e na altitude internacional a que fazemos jus pela espontaneidade e pela cultura”, reproduziu o GLOBO em sua edição do dia 25 de maio de 1962.

No dia anterior, a conquista de Palma de Ouro do maior festival de cinema do planeta pelo brasileiro ganhara a manchete do jornal, ilustrada com a foto de Anselmo Duarte (1920-2009) recebendo o prêmio das mãos da atriz francesa Edwige Feuillère. O texto destacava que o feito inédito provocara “um carnaval no Boulevard Croisette”, a principal avenida do balneário. Dois anos mais tarde, Cannes voltava a prestigiar o cinema brasileiro, exibindo em sua programação três representantes do nascente Cinema Novo: “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha (1939-1981); “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos; e “Os fuzis”, de Ruy Guerra.

— Sem dúvida, “O pagador de promessas” abriu o caminho para o cinema brasileiro em Cannes. Foi excepcional o êxito de Anselmo no festival. Basta lembrar que concorreram filmes de Antonioni, Fellini, Buñuel, Cacoyannis, Bresson etc. Truffaut presidiu o júri daquele ano e não escondeu sua torcida pelo “Pagador” — relata o veterano crítico Ely Azeredo, da equipe de Bonequinhos do GLOBO, que cunhou o termo Cinema Novo para distinguir a estética que nascia naquela época.

Em São Paulo, o crítico lembra que a festa foi como uma vitória em Copa do Mundo: houve caravanas ao Porto de Santos para saudar a chegada de Anselmo ao país.

— A comissão de seleção do Itamaraty escolheu “Deus e o diabo na terra do sol” para representar o país em Cannes em 1964. O festival, excepcionalmente, também desejou outro filme brasileiro e convidou “Vidas secas”. O filme de Ruy já ganhara prêmio (de direção) no Festival de Berlim naquele ano — conta Azeredo.

A exposição em Cannes, que promoveu o moderno cinema brasileiro mundo afora, ajudou a enterrar de vez o ciclo de popularidade das chanchadas, as comédias ingênuas, de inspiração carnavalesca, que já sofriam concorrência da emergente TV. Durante ao menos duas décadas, entre os anos 1940 e 50, esses filmes leves, que se apoiavam nas estrelas do rádio e na paisagem cariocas da época, sustentaram os esforços de estúdios brasileiros, como a Atlântida Cinematográfica, a Cinédia e a Vera Cruz, criados entre os anos 1930 e 40 numa tentativa de estabelecer no Brasil uma Hollywood tropical. São desse período filmes como “Este mundo é um pandeiro” (1957), dirigido por Watson Macedo e estrelado pro Oscarito, e “O homem do Sputnik” (1959), de Carlos Manga, com Oscarito e Zezé Macedo.

A favela ganha o mundo e inaugura um novo estilo

Ainda era madrugada em Los Angeles naquele 27 de janeiro de 2004 quando Frank Pierson, presidente da Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood, e a atriz Sigourney Weaver anunciaram os finalistas aos prêmios daquele ano. A grande surpresa, pelo menos para os brasileiros, não foram as 11 indicações de “O senhor dos anéis — O retorno do rei”, mas as quatro de “Cidade de Deus”, do paulistano Fernando Meirelles, em categorias principais (direção, roteiro adaptado, montagem e fotografia), tradicionalmente disputadas pelas produções de língua inglesa.

O filme, sobre a ascensão do tráfico de drogas no conjunto habitacional da Zona Oeste do Rio, estreou com estardalhaço no Festival de Cannes de 2002 e foi indicado pelo governo brasileiro para representar o país na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro de 2003, mas ficou fora da lista da Academia. Daí o assombro do próprio Meirelles diante da acolhida de “Cidade de Deus” pelos americanos. “Minha primeira reação foi perguntar se a Academia havia enlouquecido. Um filme em português ser nomeado para roteiro? Um filme totalmente finalizado no Brasil nomeado para categorias técnicas como edição e fotografia? O que está acontecendo?”, reagiu o diretor na capa do Segundo Caderno do dia seguinte ao anúncio.

“Cidade de Deus” saiu sem estatuetas. Mas a repercussão alimentou um novo filão no cinema brasileiro: o “favela movie”, inspirado no cotidiano das comunidades em conflito ou das periferias pobres, e o relacionamento desses com o asfalto. Desde então, uma série de filmes que exploram essa realidade passou a alimentar o imaginário do público e a bilheteria do circuito exibidor, como “Redentor” (2004), de Cláudio Torres, “Quase dois irmãos” (2004) e “Maré, nossa história de amor” (2007), de Lúcia Murat, “Cidade dos homens” (2007), de Paulo Morelli, e “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto.

— Quando rodei “Cidade de Deus”, havia uma pressão crescente dos traficantes nos morros, o problema estava ficando tão fora de controle que mais cedo ou mais tarde filmes sobre o tema apareceriam. Tive a sorte de sair na frente — analisa Meirelles, hoje. — Na época, essa temática era um bilhete para o fracasso. Ninguém queria pôr dinheiro num filme que se passava numa favela, ainda mais sem a paisagem do Rio ao fundo. O fato de o filme ter ido muito bem (3,4 milhões de espectadores) foi uma surpresa para todos, e isso deve ter influenciado outros.

A favela carioca, com visão mais romântica da comunidade, já havia sido cenário de um longa ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro — “Orfeu negro” (1959), do francês Marcel Camus, uma coprodução entre França, Itália e Brasil —, mas, pela primeira vez, uma produção de alcance internacional explorava suas mazelas com todas as cores. A onda do “favela movie”, que só fatura menos do que a nova safra de comédias apelidadas de neochanchadas, teve seu ápice em 2008, com a vitória de “Tropa de elite”, de José Padilha, no Festival de Berlim. Lá, como cá, o longa sobre a banda podre da polícia enfrentou polêmicas. “As críticas europeias, no geral, foram muito favoráveis, mas não sei por quê, as pessoas preferem reportar a crítica negativa”, lamentou Padilha na capa do Segundo Caderno sobre a premiação.

Corpo a corpo: entrevista com Daniel Filho

O “favela movie” já era um subgênero estabelecido no mercado brasileiro quando “Se eu fosse você” estreou, em 2006. Visto por 3,7 milhões de espectadores, o filme de Daniel Filho inaugurou uma nova linhagem de histórias cômicas, com um pé na chanchada dos anos 1950 e outro na comédia de costumes dos anos 1960, que gerou sucessos de bilheteria como “De pernas pro ar” (2011) e “Minha mãe é uma peça” (2013). Alguns viraram franquias bem-sucedidas, mas, para o diretor, o filão apresenta sinais de esgotamento.

O que o motivou a fazer um segundo “Se eu fosse você”?

Quando me sugeriram fazer uma sequência, achei que seria um desafio. Brinquei que queria fazer uma franquia, que era uma tradição do cinema americano, desde “O poderoso chefão” e “Guerra nas estrelas”. E achava que o primeiro filme tinha falhas.

Que tipo de falhas?

O roteiro tinha problemas de estrutura e construção de personagens, peguei ele dois meses antes de filmar. Quando terminamos, já tinha a ideia para um segundo filme. Dobramos o público do primeiro!

Por que não um terceiro?

Chegamos a pensar numa nova sequência, mas percebi que o que motivava as pessoas a fazer isso era só o dinheiro. Dinheiro é bom, mas é preciso envolver paixão. Fiquei sem vontade de fazer.

Isso pode levar ao esgotamento do filão?

Está ficando evidente esse interesse pelo dinheiro. O público cheira essa ganância. Algumas sequências já não estão rendendo o esperado. O público não quer mais do mesmo. Viu o trailer do novo James Bond? É impressionante! Estão sempre se desafiando.

Prêmios lá fora

1962: “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, ganha a Palma de Ouro no Festival de Cannes. No ano seguinte, o longa-metragem concorre ao Oscar de melhor produção estrangeira.

1964: “Os fuzis”, de Ruy Guerra, leva o Urso de Prata de melhor direção no Festival de Berlim. Naquele mesmo ano, o longa-metragem ganha uma sessão especial no Festival de Cannes.

1986: Coprodução com os Estados Unidos, “O beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco, é indicado a quatro Oscars (filme, direção, ator e roteiro adaptado) e vence o de interpretação, para o americano William Hurt.

1986: Fernanda Torres fatura o prêmio de melhor atriz (dividido com a alemã Barbara Sukowa, de “Rosa Luxemburgo”) no Festival de Cannes, por seu desempenho em “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor.

1998: “Central do Brasil”, de Walter Salles,vence o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim; no ano seguinte concorre em duas categorias do Oscar: filme estrangeiro e atriz (Fernanda Montenegro).

2008: “Tropa de elite”, de José Padilha, ganha o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim. O sucesso do filme estrelado por Wagner Moura estimulou a realização de uma sequência, em 2010.

O Globo

 

O teatro ao longo de 90 anos

O teatro de revista, com seu público fiel e a exuberância de vedetes como Virginia Lane, rendeu uma penca de matérias nas páginas do GLOBO por décadas. Com o passar do tempo, outros gêneros foram ganhando evidência – dos dramas familiares de Nelson Rodrigues aos musicais, que já tiveram diversas fases, do besteirol ao mais recente fenômeno do stand-up comedy. Tudo acompanhado de perto pelo jornal, com reportagens, críticas e entrevistas, conforme mostramos a seguir.

Anos de glamour

O luxo, o humor e a beleza estonteante das “girls” fizeram a alegria do público fiel ao teatro de revista. Os tempos de glória do gênero, que teve atrizes estelares como Eva Todor e alcançou luxo máximo com o empresário Walter Pinto (1913-1994), estão estampados ao longo das décadas nas páginas do GLOBO. Em 1941, Virgínia Lane, por exemplo, era descrita com o seguinte entusiasmo: “Uma criaturinha delicada e pequenina, uma boneca de biscuit, uma vozinha agradabilíssima, impregnando de it, graça e sedução os mais contagiantes sambas e entusiásticas marchinhas, eis, em rápidas pinceladas o que é, quem é Virginia Lane”, dizia o texto a respeito da estreia da vedete na P.R.A. 9 (prefixo da Rádio Mayrink Veiga). Em 1961, Virginia Lane seria tratada nas páginas como “a vedette número um do nosso teatro musicado”, por conta da estreia de ‘Segura o Ximango’”.

Vedetes recebiam elogios. Mara Rubia era descrita como a “insinuante estrela loura”, em artigo sobre a volta ao Teatro Recreio de Walter Pinto, para estrelar “Vamos p’ra cabeça”, na edição de 29 de dezembro de 1948. Alvo de admiração eram também cômicos como Dercy Gonçalves, Oscarito e Grande Otelo. Em outubro de 1950, o jornal noticiava: “Pela primeira vez em suas vidas artísticas, Oscarito e Grande Otelo vão aparecer juntos num palco, para dar ainda maior vulto às grandes apresentações deste ano no Teatro Recreio”.

O convite feito a Oscarito foi para que o comediante integrasse o elenco de “Muié macho, sim sinhô”, título comemorativo do jubileu da empresa de Walter Pinto e que o jornal antecipava como “o maior acontecimento artístico do ano”. A crítica assinada por G. Doria (Gustavo), em novembro de 1950, fazia ressalvas: “Um elenco feminino de primeira categoria (onde se destaca uma grande equipe de mulheres bonitas) e uma riqueza de montagem dificilmente igualada em palcos brasileiros são as principais características de ‘Muié macho, sim sinhô’ como espetáculo. Mas, se sobra audácia na reunião de atrizes de qualidade dentro de vestuários riquíssimos, falta ao espetáculo apoio ao elenco masculino, que se vê manietado dentro de um têxto que chega ser lamentável”.

«Cafajestismo», escreveu Antonio Maria

Não faltaram críticas. Entre as mais contundentes, está a de Antonio Maria, então colunista do GLOBO. Sob o título “É preciso sanear”, Maria escreveu, em 6 de maio de 1959: “Depois de ‘botar para jambrar’ (referência à produção ‘Botando para jambrar’), o senhor Válter Pinto acaba de bater todos os recordes de mau gôsto, com o título de sua nova revista ‘Tem bububu no bobobó’. Ora, os títulos das revistas brasileiras são tradicionalmente estúpidos, invariavelmente sórdidos, mas êste ultrapassa o cafajestismo de tudo quanto foi escrito da incultura e do deboche, nos cartazes da Praça Tiradentes”.

Apesar das críticas — a de Maria se estende por quatro parágrafos —, é inegável a relevância do gênero, que nasceu ainda no século XIX e se estendeu até os anos 1960.

— A revista trabalhava com duas características fortes do brasileiro: a musicalidade e o humor. E moldou a figura do carioca, levando o morro e o malandro, ao palco. Sinhô, Ary Barroso e Assis Valente compuseram músicas para o teatro musicado — cita a crítica Tania Brandão. — E foi importante para a estruturação do negócio. Era um teatro que se financiava.

Da ‘velha escola’ ao stand-up

No dia 19 de julho de 1979, O GLOBO noticiava, com chamada na primeira página, a morte de Procópio Ferreira, aos 81 anos: “Morre o último grande ator da ‘velha escola’”. Na ocasião, Fernanda Montenegro declarou ao jornal: “Ele faz parte daquela geração da minha meninice, da minha adolescência. Cada vez que penso nesse panorama — o teatro dessa época —, a figura de Procópio é fundamental”. Ícone de um período marcado por nomes como Jayme Costa e Dulcina de Moraes, o ator viveu mais de 500 personagens em 427 peças.

— Papai lançou 24 autores nacionais. “Deus lhe pague” , de Joracy Camargo, foi a peça mais representada no Brasil — frisa hoje a filha, Bibi Ferreira.

O Trombone do Asdrúbal

“Depois de uma gestação de nove meses, com várias estreias adiadas, os asdrubals — sem dinheiro, mas mantendo o sentido do prazer — estreiam hoje, no Dulcina , seu terceiro espetáculo”, dizia Clovis Levi, sobre “Trate-me leão”, em 14 de abril de 1977. Era o primeiro texto autoral do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de Hamilton Vaz Pereira, Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Perfeito Fortuna, Patrícia Travassos e Evandro Mesquita, que marcou a cena teatral com sua vitalidade e irreverência.

— O Asdrúbal surgiu em 1974 sob a ditadura militar. Éramos um grupo de garotos com vontade de estar na vida. Fizemos um teatro com alegria de viver, que durou dez anos — lembra Hamilton.

A vez de Besteirol

No dia 29 de agosto de 1980, o então crítico teatral do GLOBO Flávio Marinho dizia que “As 1001 encarnações de Pompeu Loredo” (foto) era peça “pouco recomendável aos mal-humorados”. O texto de Vicente Pereira e Mauro Rasi, dirigido por Jorge Fernando, foi o pontapé para o teatro besteirol.

— Duplas como Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, Miguel Falabella e Guilherme Karam, Stella Miranda e Tim Rescala, Luiz Salem e Aloísio de Abreu pegaram a irreverência do Asdrúbal e avançaram, brincando com referências culturais e fazendo críticas de comportamento. O besteirol podia ser mordaz, e até violento, mas sempre banhado pelo humor — diz Marinho, que escreveu no GLOBO entre 1979 e 1987 e, depois, notabilizou-se como autor de sucessos para o teatro e a TV.

Graca en pé

“Produto típico americano, a stand-up comedy pegou graças a humoristas como Fernando Ceylão, Cláudio Torres Gonzaga e Paulo Carvalho”, dizia o Segundo Caderno em 27 de março de 2007. “Comédia em pé” (foto), com adesão de Fernando Caruso, soma 10 anos.

— Fomos os primeiros do gênero no Brasil. E seguimos em cartaz — comemora Torres Gonzaga.

O musical (re)conquista lugar sob os refletores

Podia ser hoje. Mas faz tempo que o Segundo Caderno estampou na capa o título “No ritmo dos musicais — Com sete espetáculos em cartaz no Rio, gênero se firma como a principal tendência de 1998”. A reportagem de Roberta Oliveira dizia: “Enquanto a maior parte dos espetáculos teatrais (…) sofre com a crise de público, os musicais conquistam espectadores fiéis e se consolidam como os favoritos do público.” Pois o gênero só fez avançar e permanece no centro da cena hoje, com uma profusão de espetáculos biográficos ou versões para títulos da Broadway.

Naquele abril, os palcos fervilhavam com “Somos irmãs”, sobre as cantoras Linda e Dircinha Batista; “Noel— O feitiço da Vila” e “Na bagunça do teu coração”, calcados nas obras de Noel Rosa e Chico Buarque. Estava ainda em cartaz, entre outros, “As malvadas”, da dupla que virou referência no gênero, Cláudio Botelho e Charles Moeller.

O teatro musical saía definitivamente do ostracismo a que havia sido relegado a partir dos anos 1960. A retomada teve por marco zero a montagem de “Theatro Musical Brazileiro: 1860/1914″, de Luiz Antônio Martinez Corrêa, em 1985. No GLOBO, Flávio Marinho anunciava a estreia, no Paço Imperial, dando conta de que o espetáculo era “a reunião dos melhores momentos do material pesquisado, numa seleção de 20 números musicais, roteirizados em ordem cronológica, indo de quadrilhas, passando a romances, óperas cômicas, operetas, melodramas, bailados, mazurkas, valsas, canções e cançonetas”.

— A partir daí começa a surgir um ciclo de continuidade do teatro musical — explica a crítica e pesquisadora Tania Brandão.

Mas não é que os palcos tenham, até então, se calado. “Minha querida Lady” (1962), com Bibi Ferreira, foi um marco como a primeira versão para um musical da Broadway. E “Orfeu da Conceição”, em 1956, já promovera o encontro artístico de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, como registrou o crítico Gustavo Doria: “Orfeu da Conceição surge pois como uma das mais sérias experiências de teatro já aparecidas entre nós”. E a canção engajada deu o tom em “Arena conta Zumbi” (1965), de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com música de Edu Lobo, e em “Gota d’água” (1975), de Paulo Pontes e Chico Buarque, que narrava a tragédia de uma Medeia suburbana

Nelson Rodrigues e a cena moderna

Marco do teatro moderno no Brasil, “Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues, dirigida pelo polonês Zbigniew Ziembinski recebeu crítica do GLOBO, assinada por M.H., em 29 de dezembro de 1943, que descrevia um Municipal lotado e impactado. A encenação do grupo Os Comediantes foi precedida de breve resumo sobre o tema da peça. “Essa explicação não bastou, entretanto, à compreensão de numerosos assistentes. Nos intervalos, colhemos flagrantes eloquentíssimos: os espectadores explicavam uns aos outros o que se estava passando no palco”. Ao final, o público “com uma vibração que não pode ser chamada de convencional, aplaudiu longamente os intérpretes e pediu em vão a presença do autor, que não apareceu, sem surpresa para nós, que com ele privamos e conhecemos de perto o pavor que lhe infundem os conglomerados humanos mesmo quando compostos por pessoas de inteligência e cultura”.

Sobre a estreia, o próprio Nelson diria anos depois, em 14 de janeiro de 1976, numa entrevista ao hoje autor de novelas Gilberto Braga, na época crítica do GLOBO: “Fiquei no fundo de um camarote, incapaz de olhar o palco, ouvindo apenas, e esperando a catástrofe. O primeiro ato não foi aplaudido. Só umas palminhas. No final do terceiro ato, houve um silêncio atroz. Eu digo logo: meu Deus do céu! Que fracasso! E aí começaram palminhas, palminhas, a coisa foi evoluindo num crescendo, até se transformar numa monumental apoteose”.

«A constelacão Pauliceia»

As inovações cênicas de “Vestido de noiva” abriram caminho para a criação de grandes companhias como a de Maria Della Costa. A mais famosa delas foi, entretanto, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), do empresário Franco Zampari, que deslocou do Rio para São Paulo o eixo da atividade teatral, como registrou reportagem de Gustavo Doria, em 30 de janeiro de 1954: “Deve-se à fundação do Teatro Brasileiro de Comedia, pois, o início de um movimento em prol do teatro”.

Sob o subtítulo “A constelação da pauliceia”, falava-se dos inúmeros talentos que se firmavam nos palcos. “ (…) brilham os nomes de Cacilda Becker, num primeiro plano justíssimo; Madalena Nicoll, outro belo talento; Nidia Licia, que ainda há pouco aplaudimos em nosso Municipal como uma das integrantes da Companhia Dramática Nacional; Cleide Yaconis, revelação de 1953 (irmã de Cacilda); Tonia Carrero estreando agora em São Paulo; Paulo Autran, que Fernando de Barros ‘descobriu’ e devolveu a São Paulo (….)”. Doria citava ainda, entre outros, “Nicette Bruno, Jaime Barcelos, Sergio Britto, Margarida Rey e mais uma legião de elementos valiosos oriundos de uma geração que tem em Sergio Cardoso o seu expoente».

— O TBC era uma companhia fixa baseada na qualidade do texto, na intervenção do diretor, implantou um modelo de espetáculo de fortes tradições europeias — afirma hoje o crítico teatral do GLOBO, Macksen Luiz. — E rendeu filhotes como as companhias Tonia-Celi-Autran, a de Cacilda Becker e o Teatro dos Sete.

Este último era formado pelo diretor Gianni Ratto e os atores Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sergio Britto e Ítalo Rossi, que estreou em 1959, com montagem de “O mambembe”. Em dezembro daquele ano, a coluna de teatro assinada por Zora Seljam registrava “O mambembe em quadrinhos”, com desenhos de Gutemberg, inspirados em fotografias de quadros da peça. “O resumo da burleta de Artur Azevedo e José Pisa que vem sendo levada com tanto sucesso pelo Teatro dos Sete, foi escrito por Labanca, assistente de Gianni Ratto e intérprete do Coronel Chico Inácio”, esclarecia o texto.

Os anos 1950 veriam também “O auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, texto que se tornaria um clássico da dramaturgia nacional assim como “Vestido de noiva”. No dia 4 de dezembro de 1956, a seção O GLOBO nos Teatros noticiava que a peça fora escolhida pela Fundação Brasileira de Teatro para o I Festival de Amadores Nacionais. Em fevereiro seguinte, a seção falava do sucesso do espetáculo que lotava o Teatro Dulcina, no Rio. Gustavo Doria se derramou em elogios ao autor: “poeta por excelência, conjuga o local ao universal”.

Décadas depois, outro título causaria impacto. Em 8 de agosto de 1985, o então crítico Flávio Marinho escreveu no GLOBO: “Um espetáculo que não facilita a tarefa de quem for assistir e foge do óbvio como o diabo da cruz, no qual a mise-en scène não pode ser mais árida, distante, glacial, tirando o espectador de sua convencional posição passiva”. Tratava-se de “Quatro vezes Beckett”, de Gerald Thomas. Com uma cortina de fumaça, bem notada por Marinho, estava dada a largada para o que se chamou de “era dos encenadores», termo cunhado por Macksen Luiz. Além de Thomas, os diretores Moacyr Góes, Bia Lessa e Gabriel Villela despontam como os maiores nomes deste momento.

— O início dos anos 1990 reúne esses diretores que produziram muito e inovaram na cena do ponto de vista estético e formal — avalia Macksen.

O cuidado estético fica claro, por exemplo, no texto que a crítica Barbara Heliodora faria a “Epifanias”, de Moacyr Góes, no GLOBO de 18 de janeiro de 1993. Para ela, a encenação superava a obra de Strindberg: “Nada tão paradoxal quanto o fato de ‘Epifanias’, uma encenação excepcional, merecer restrições justamente por causa do texto que motivou sua criação”.

Os palcos e os anos de chumbo

A cena teatral ganhou fôlego político no fim dos anos 1950 e durante a década de 60, marcada pelo trabalho de grupos como o Arena e o Oficina. Estava marcada uma trajetória de luta contra a censura e a ditadura.

“‘Roda viva’ sai de cena a pedido do III Exército” anunciava O GLOBO em 5 de outubro de 1968, às vésperas de o Ato Institucional nº5 ser baixado. A reportagem trazia a reprodução de uma nota do Departamento da Polícia Federal que dizia em seu terceiro parágrafo: “Em cada espetáculo levado ao público, o script era modificado escandalosamente. A peça ‘Roda viva’ transformou-se, assim, em autêntico show depravado, numa constante sucessão de cenas atentatórias à moral e aos bons costumes”.

Dois dias depois, a peça retornava ao noticiário: “Artistas de ‘Roda viva’ voltaram feridos do sul”. O GLOBO registrou a trajetória do espetáculo de Chico Buarque, dirigido por José Celso Martinez Corrêa, que virou sinônimo da luta contra a ditadura em tempos sombrios para todas as artes.

“Roda viva” foi, entretanto, duramente criticado por Martim Gonçalves, em janeiro de 1968. “Enfim, ‘Roda viva’ não passa de muito barulho por nada. E não venham com teorias. Só merece o comentário na medida em que essa montagem pode falsear o próprio teatro, por causa de sua extrema pretensão”. Gonçalves, porém, rende-se a alguns encantos. “Marieta Severo está muito linda” diz a legenda da foto da atriz em cena.

Marcos do teatro

Teatro experimental do negro

Em 1946, quando o grupo de Abdias do Nascimento (acima, com Léa Garcia, em “Sortilégio”) estreou “Todos os filhos de Deus têm asas”, O GLOBO saudou a companhia como “iniciativa das mais sérias e de possibilidades enormes dentro do nosso teatro”.

Outro marco da censura no Brasil, “Calabar”, musical de Chico Buarque e Ruy Guerra, também teve sua história documentada além dos palcos. Em 1º de novembro de 1973, o espetáculo sobre Domingos Fernandes Calabar, que estrearia dentro de uma semana, foi objeto de uma extensa reportagem. Mas acabou vetado às vésperas da estreia. Quase 30 anos depois, em 25 de janeiro de 1980, o jornal anunciava: “‘Calabar’: enfim liberado”. Passado um mês, reportagem assinada por Emília Silveira afirmava que o espetáculo estrearia em maio seguinte.

Por duas vezes, “Calabar” ganharia a capa do Segundo Caderno, criado em 1984. A primeira, em 1988, quando o texto recebeu leitura dramatizada no Teatro Carlos Gomes, no ciclo “Os anos do silêncio”, em matéria assinada por Aimée Louchard. A segunda, 15 anos mais tarde, em 2013, quando Ruy Guerra anunciou seu desejo de redirigir o clássico, celebrando os 40 anos do texto.

O Globo

 

As Artes Visuais nos 90 anos do jornal O GLOBO

O embate entre tradicionalismo e ‘novidadismo’ foi um dos grandes temas da área na primeira metade do século XX, disputando espaço nas páginas do GLOBO com notícias policiais e econômicas. Depois passaram pelas manchetes do jornal, por exemplo, o surgimento do MAM, a era das megaexposições e a «Geração 80», além das grandes novidades das vanguardas do Brasil e do mundo. Múltiplas paletas do universo das artes visuais coloriram as linhas do GLOBO nestes 90 anos de história.

Modernos à vista

Havia já três anos que a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, sacudira o mofo no meio artístico quando o primeiro número do GLOBO saiu da gráfica. A cobertura do jornal, em seus primeiros anos de vida, restringia-se a notícias sobre a nova diretoria da Sociedade Brasileira de Bellas Artes ou os salons nacionais promovidos pela Escola Nacional de Belas Artes (Enba), bastião da arte acadêmica.

Mas, em 1931, algo mudou. No lastro das reformas políticas implementadas pela Revolução de 1930, o arquiteto Lúcio Costa, então com 28 anos, foi nomeado diretor da Enba, e, pela primeira vez, a exposição anual iria se realizar “sem preconceitos de escolas estheticas, intransigência ou imposições de Jury de selecção”, como noticiou O GLOBO em 1º de setembro de 1931, data da abertura da mostra, apelidada de “Salão Revolucionário”. “Assim lá se encontram desde o professor Henrique Bernardelli até a futurista Tarsila, e os avançados renovadores de São Paulo. Os acadêmicos constituíam, antigamente, a quasi unanimidade do Salão; agora, a maioria coube aos modernos, entre os quais estão, indiscutivelmente, as mais notáveis telas”, lê-se no jornal. Um mês depois, O GLOBO voltava ao assunto, documentando o encerramento do salão e do “choque havido entre o tradicionalismo e o ‘novidadismo’».

Aos “avançados renovadores” — como Anita Malfatti, que exibiu entre outras “O homem amarelo” (1915-16), uma das telas da sua explosiva “Exposição de arte moderna” realizada em 1917 em São Paulo, Di Cavalcante e Victor Brecheret — juntaram-se nomes como Lasar Segall, Ismael Nery e Cicero Dias. Este último teve a sua obra “Eu vi o mundo… ele começava no Recife” (1929), mural de 15 metros em papel kraft, danificado por pessoas que se sentiram ofendidas com as cenas de nudez. Remontado pelo pintor sobre telas, com três metros menos, ele foi exibido ano passado no Museu do Arte do Rio (MAR), e, por conta de sua história turbulenta, mereceu um inédito — para uma obra de arte — perfil no Segundo Caderno, em 25 de janeiro de 2014.

«Obra de comunista»

— O modernismo começou em 1922, mas, no Rio, o marco inicial foi em 1931, com este salão que Manuel Bandeira chamou de Salão dos Tenentes, em oposição aos acadêmicos, que seriam os “generais” — diz Frederico Moraes, crítico de arte do GLOBO de 1975 a 1987, e autor do artigo “Em 1931, ‘tenentes’ sofrem derrota e fixam Modernismo” publicado em 10 de dezembro de 1984, por ocasião do VII Salão Nacional de Artes Plásticas, em que uma sala lembrava o evento de 1931.

A arte moderna abriu seu espaço aos poucos — em 1943, a retrospectiva de Lasar Segall no Museu Nacional de Belas Artes mobilizou artistas e intelectuais depois de ter sido atacada verbalmente por fascistas como “obra de comunista”.

— Foi a exposição individual mais comentada do período moderno — lembra Moraes.

A arte moderna ainda demoraria em espraiar suas pinceladas para além dos círculos intelectuais, e isso se refletiu no pouco espaço dedicado pelo GLOBO à área. No dia 20 de outubro de 1951, o mais importante evento artístico do ano era noticiado pelo jornal espremido entre os resultados dos “Jogos da Rodada” e o “Tabelamento do Algodão”: “Inaugura-se hoje a I Bienal do Museu de Arte Moderna”. O evento, reunindo 1.800 obras de artistas de 21 países, foi saudado pelo redator:

“Não precisamos acentuar aqui o mérito da iniciativa, atraindo, pela primeira vez para o nosso país, o interesse de grandes centros de civilização e oferecendo ao Brasil uma oportunidade extraordinária de conhecer o que de mais significativo tem criado o nosso e o gênio de outros povos, no território da arte e da beleza”.

Território da arte e da beleza? Quase 30 anos depois da Semana de Arte Moderna em São Paulo e 20 anos após o Salão Nacional de Belas Artes de 1931, as artes visuais ainda eram associadas à noção de “belo”. Trabalhos que não se encaixassem em categorias “clássicas”, como pintura, escultura, desenho ou gravura, dificilmente poderiam estar ali. Foi o caso do “Aparelho cinecromático”, obra de Abraham Palatnik que conjuga luz, cores e movimento, acionada por pequenos motores, e que acabou recusada inicialmente por não se enquadrar nos grupos citados. Exposto, não passou incólume pelo olhar de Jefferson Avila Junior, então diretor do Museu Antonio Parreiras, em Niterói, em artigo especial para o GLOBO, em 28 de novembro de 1951.

Nele, pouco mais de um mês depois da abertura da Bienal, Avila Junior fazia um texto em que trazia uma análise bem-humorada sobre as obras expostas e as escolhas do júri (a Bienal, em seus primórdios, era competitiva). Ele não citou o prêmio de escultura (para “Unidade tripartida”, do suíço Max Bill), mas escreveu sobre a tela “Namorados no café”, do francês Roger Chastel, premiada na categoria pintura estrangeira: “A afluência de curiosos ao reduto do artista vencedor é considerável, sucedendo-se os grupos que passam adiante, desesperançados de encontrar os namorados ou, sequer, o café, e os grupos que chegam alegres, confiantes, e dispostos a matar a charada”. Sobre a reação à obra de Palatnik, escreveu: “O público ria e trocava impressões chistosas. Mas tanto foi levado a sério o aparelho do Sr. Palatnik, que ele ali estava, devidamente catalogado”.

Hoje, há aparelhos como aquele no MoMA, em Nova York, no MAM do Rio e no Malba, em Buenos Aires. O próprio artista, atualmente com 87 anos, possui dois, mas não pretende vendê-los. O valor, segundo Anita Schwartz, uma das galeristas que o representam no Rio, é inestimável. Prova de que a arte moderna ocupou valentemente o seu lugar. Em 1953, a segunda Bienal de São Paulo, com curadoria de Mário Pedrosa, sedimentou de vez a arte moderna aqui, ao trazer ao país os artistas concretos europeus.

A era das megaexposições

Em 21 de fevereiro de 1997, o Segundo Caderno noticiava, em sua capa, uma “superprodução impressionista”: a exposição “Monet e seus amigos”, a ser inaugurada em 12 de março no Museu Nacional de Belas Artes, prometia ser a mais cara já montada no Brasil até então. Com 40 telas — 33 do pintor e sete de colegas impressionistas —, fotografias e a remontagem de sala de jantar de sua casa em Giverny, entre outras atrações, ela atraiu, em 70 dias, 432 mil visitantes ao museu, consolidando a era das mostras blockbusters dois anos depois de Rodin ter levado 226 mil pessoas ao mesmo local.

A elas se seguiram exposições de Salvador Dalí, vista por 250 mil, também no MNBA, e Camille Claudel (165 mil, no MAM). O GLOBO refletiu a dimensão inédita dessas mostras, publicando numerosas reportagens, com temas como a chegada das obras ao Rio e o convite a artistas para analisarem as exposições, possíveis graças a vultosos patrocínios.

Já neste século, o Centro Cultural Banco do Brasil assumiu um papel de liderança na promoção dessas mostras, geralmente em parcerias com instituições internacionais. Com “Surrealismo”, em 2001, a instituição registrou pela primeira vez filas fora do prédio. Em 2011, “O mundo mágico de Escher”, vista por 573.691 pessoas, teve a maior média internacional de visitantes por dia no ano, segundo a “The Art Newspaper”. Em 2012, “Impressionismo: Paris e a modernidade” trouxe ao Rio 85 obras do Museu d’Orsay, de Paris, atraindo 561.142 pessoas. A de Salvador Dalí (2014) registrou 978.171 visitas em cem dias úteis. O MAM teve o seu quinhão de popularidade: 300 mil admiraram as esculturas hiper-realistas do australiano Ron Mueck.

— A estratégia de trazer exposições de grandes nomes e alterná-las com contemporâneos, como (os escultores britânicos) Anish Kapoor e Antony Gormley, ou brasileiros como Milton Machado, tem contribuído para a formação de público. Quem vem atraído por Dalí ou Picasso acaba vendo outras mostras — diz o diretor geral do CCBB, Marcelo Mendonça.

O museu na capa

Raramente ocupando o espaço nobre da manchete do jornal, as artes visuais chegaram à primeira página do GLOBO no dia 9 de julho de 1978 de uma forma trágica. O incêndio que destruiu 90% do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio foi a notícia mais forte do dia, e mereceu, além da capa, cinco páginas na editoria Grande Rio. Foram queimadas peças importantes do acervo — telas de Picasso, Miró, Salvador Dalí, Paul Klee, Max Ernst e desenhos de Matisse, além de obras dos brasileiros Volpi, Portinari e Iberê Camargo. Dezenas ficaram danificadas. À época crítico de arte do GLOBO, Frederico Moraes começava assim um longo artigo: “Difícil escrever depois do impacto da tragédia. Como era difícil conter o soluço e não chorar diante daquelas imagens de terra arrasada”, observou ele, que estava bem perto do drama: desde 1966, coordenava o setor de cursos do museu, e trabalharia também no de exposições. Em seu texto, ele ressaltava o que considerava a “perda irreparável”: o desaparecimento de 70 obras (entre pinturas, objetos e esculturas) do período construtivo do uruguaio Joaquín Torres-García, que formavam o núcleo central da exposição “América Latina: geometria sensível”, praticamente extinguindo uma importante fase do artista.

Trinta e sete anos depois, Moraes lembra bem da madrugada de horror do dia 8 de julho, um acontecimento que causou comoção.

— Foi um choque extraordinário, algo traumático não só para a cidade. Foi uma perda brasileira, mas também latino-americana e internacional. Torres-García foi jovem para a Europa, realizou grande parte de sua obra em Paris, onde criou a associação O Círculo e o Quadrado com Mondrian e outros. Teve um impacto muito grande, justamente quando o Brasil se abria para a América Latina — diz ele.

As notícias sobre o incêndio se sucederam por vários dias, sempre ocupando grande espaço no jornal. Carlos Vergara, em nome da então recém-fundada Associação dos Artistas Plásticos, encabeçou uma delegação que foi até lá prestar solidariedade. Uma manifestação nos jardins iniciou uma mobilização pela doação de obras. O MAM, além de palco de exposições emblemáticas, como “Opinião 65” — com curadoria de Jean Boghici e Ceres Franco e um elenco que incluía Antonio Dias, Rubens Gerchman, Helio Oiticica, Roberto Magalhães e o próprio Vergara — também era ponto de encontro de artistas e plataforma de movimentos, como o Grupo Frente, surgido nas oficinas ministradas por Ivan Serpa.

No início dos anos 1980, o museu começaria a recompor o acervo, com obras doadas por artistas, instituições e representações diplomáticas. E, em 1993, Gilberto Chateaubriand, um dos maiores colecionadores do país, depositou na instituição, em regime de comodato, sua coleção, hoje com cerca de 4.000 obras.

A mulher, expresão da arte

Em 2013, 35 anos após o incêndio, o museu obteve verbas de um edital da Secretaria municipal de Cultura para recuperar peças danificadas pelo fogo que ainda aguardavam restauro. São obras de Djanira, Ivan Serpa, Lygia Clark e Manabu Mabe, entre outros, expostas em 2014 na mostra “Acervo MAM — Obras restauradas”. Uma das exceções foi “Homenagem a Fontana” (1967), de Nelson Leirner.

— O Nelson fez uma nova, porque não havia condições de ser restaurada — conta Luiz Camillo Osorio, curador do MAM e responsável pela mostra que, de certa forma, encerrava um ciclo.

— Na época demoraram para me dar a notícia, era uma grande confusão, ninguém sabia com certeza o que havia sido perdido — lembra Leirner, que morava em São Paulo. — Até que o Camillo me ligou propondo fazer um novo trabalho, um simulacro do primeiro, para ser exposto com o original.

O incêndio interrompeu por um longo período uma história que vinha se construindo entre o MAM e a cidade. A fundação da instituição ocorreu em 1948, mas sua instalação no prédio modernista de Affonso Eduardo Reidy (na época só havia o chamado bloco-escola) se deu em 27 de julho de 1958. No dia seguinte, O GLOBO noticiou, na capa: “A arte moderna conquistou ontem seu abrigo no Rio”. Na pequena reportagem à página 4, nem uma linha sobre a exposição inaugural. Em vez disso, uma associação bem “masculina” entre arte e o gênero feminino: “A inauguração do Museu de Arte Moderna constituiu realmente um belo espetáculo, pois, a par de seu significado próprio, o acontecimento serviu de pretexto a um desfile de beleza e elegância, onde a moda ‘saco’ pontificou à vontade. A arte moderna esteve presente também, ao vivo, através de uma de suas mais belas expressões: a mulher moderna, deliciosamente sofisticada”.

Geração 80

Em 14 de julho de 1984, um grupo de 123 artistas tomou de assalto o Parque Lage. Segundo a reportagem do GLOBO, eles eram “corajosos e debochados, nada racionais, partidários da alegria e do prazer”. Esse era só o início de uma apresentação do que viria a ser uma festejada exposição: “Como vai você, Geração 80?”. Ela ia bem, e provava isso, depois de uma era, dos fins dos anos 1960 ao início dos 80, dominada pela arte conceitual e sua resistência ao regime militar. Agora, a pintura (de artistas como Luiz Zerbini, Chico Cunha, Cristina Canale, Daniel Senise e Beatriz Milhazes), cuja morte fora decretada diversas vezes, despontava, com ênfase no figurativo, nas paredes do animado casarão, ao lado de esculturas, desenhos, instalações e performances.

Ao completar 30 anos, a mostra foi tema de uma edição especial do Segundo Caderno, publicada em 14 de julho de 2014. Com o distanciamento de três décadas, era possível analisar um de aspectos periféricos: a rápida absorção de muitos dos artistas participantes pelo mercado, “num processo de fulgurante expansão com o surgimento de yuppies endinheirados, empresas investindo mais e mais em arte e leilões alcançando cifras imprensáveis até então”. De fato, foi uma época em que galerias de arte sofreram uma expansão vertiginosa, em que a arte era negociada por valores antes impensáveis.

Nos últimos anos, Beatriz Milhazes e Adriana Varejão (esta, da geração imediatamente posterior à da mostra no Parque Lage) têm se revezado como as mais caras artistas brasileiras vivas. Em 2012, Beatriz viu sua tela “Meu limão” ser arrematada em leilão da Sotheby’s por US$ 2,1 milhões. No ano anterior, Adriana teve a obra “Parede com incisões a la Fontana II” vendida na Christie’s por US$ 1,7 milhão. São números reveladores da potência da arte contemporânea, cujo movimento o jornal passou a acompanhar, noticiando leilões, expansão de galerias e feiras comerciais, como a SP Arte e a ArtRio.

O apogeu da modernidade

Considerado pelos críticos um dos momentos mais importantes da moderna arte brasileira, o Movimento Neoconcreto pouco foi noticiado pelo GLOBO em seu surgimento, em 1959. Uma única pequena reportagem, com o título “Concretismo… ora bolas!”, em 8 de maio daquele ano, ouvia o artista baiano Mario Cravo, que respondia a críticas de Ferreira Gullar a respeito da exposição que fazia então no MAM do Rio. “Todos os artistas que se interessam e se inspiram nas nossas tradições e costumes são, para os os neoconcretos, burros e verde-amarelistas, isso numa classificação a que dão ênfase depreciativa”, declarava ao jornal.

O mesmo museu, dois meses antes, abrigara a I Exposição de Arte Neoconcreta. Nela, destacavam-se os nomes de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amilcar de Castro, Wyllis de Castro, Aluísio Carvão e Franz Weissmann. No mesmo ano, Gullar — um dos principais teóricos do movimento, ao lado do crítico Mario Pedrosa — publicou os textos “Manifesto neoconcreto” e a “Teoria do não objeto”.

Surgido como uma dissidência ao rigor e excesso de racionalismo do Concretismo pregado em São Paulo por Haroldo de Campo, Augusto de Campos e Décio Pignatari, o Neocroncreto buscou maior subjetividade e intuição, uma liberdade que acabaria produzindo obras surpreendentes, como os bichos (abaixo) de Lygia Clark, os relevos espaciais de Oiticica ou obras de Lygia Pape que requisitavam a participação do público.

Com o passar do tempo, o jornal passou a dedicar um grande espaço para esses artistas, a primeira geração a atrair o olhar internacional para a arte brasileira. Olhar que perdura até os dias de hoje.

O Globo

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