Pinturas atravesadas por las problemáticas de la sociedad brasileña

1.003

Com mãos ternas e firmes, a jovem negra de tristes olhos aconchega o filho ao peito. O vestido simples, o jeito humilde, as casas modestas ao fundo refletem o ambiente de pobreza, reforçado pela luz difusa e pelos tons escuros da composição. O óleo sobre telaJovem Mãe (1937) é uma das obras em que a artista Yolanda Mohalyi, nascida húngara e naturalizada brasileira, exprime empatia com os temas sociais. “A condição humana, o sofrimento injusto da gente pobre, humilde, doente, resignada, grata por um gesto de carinho, solidariedade, sempre me tocou e revoltou”, escreveu a pintora, que em 1931, aos 25 anos, deixou tudo rumo a um “planeta desconhecido, de cores deslumbrantes”.

Vinha ter no Brasil com o noivo e conterrâneo, o engenheiro químico Gabriel Mohalyi, imigrado pouco antes. Estabeleceram-se num sobrado de dois quartos alugado na Rua Dona Veridiana, Higienópolis, que a moça de traços e sentimentos delicados transformou em morada e ateliê. “O impacto da chegada foi inesquecível: a paisagem, a luz tropical e a natureza exuberante de nosso litoral, tudo diferia da velha Europa.

Sua pintura, como não poderia deixar de ser, foi afetada por esse mundo novo ao qual Yolanda procurava se adaptar. A paleta, antes sombria, ganhou cores quentes, com predomínio dos ocres e terras”, diz Maria Alice Milliet, autora de Yolanda Mohalyi: A Grande Viagem (DAN Galeria, 256 págs., distribuição restrita a museus e instituições de ensino). Simultânea ao lançamento, sábado 24 a galeria abre uma retrospectiva (DAN Galeria, São Paulo. De 24 de outubro a 24 de novembro) com 50 trabalhos, entre desenhos, aquarelas e óleos. “A mostra abarca do início dos anos 1930 até próximo da morte de Yolanda, nos anos 1970”, diz o curador Peter Cohn, da DAN Galeria.

Maria Alice, que desde 2006 pesquisa a trajetória artística de Yolanda, faz uma leitura crítica da obra e insere a produção no contexto da época. Descreve as caminhadas da pintora pela cidade, o olhar curioso sobre as casas e seus moradores, que a interessavam a ponto de preferir desenhá-los a aceitar encomendas. A pintora retrata os deserdados, os desprovidos, os párias. No Anhangabaú, conhece uma favela repleta de “gente doente de miséria”. Entra, desenha e pinta retratos dos desconhecidos. Está à vontade entre eles.

O sentimento de solidariedade que a move é partilhado por outros artistas e intelectuais seguidores do ideário expressionista, entre eles Lasar Segall, Oswaldo Goeldi e Candido Portinari. “Yolanda conhece Segall em meados da década de 1930 e frequenta seu estúdio por dez anos. Apesar das diferenças, ele, pintor renomado e residente em São Paulo desde 1923, ela, recém-chegada e em início de carreira, entre ambos desenvolveu-se uma amizade respeitosa, fundada num lastro cultural comum”, afirma Maria Alice. Originários ambos do Leste Europeu, formados pelas academias de Dresden e Budapeste, abandonaram a Europa culta “paradoxalmente acometida por preconceitos religiosos e raciais e pelo radicalismo político, para no Brasil iniciar uma nova vida”.

A dolorosa lembrança que Segall tem dos pogroms e a áspera memória dos conflitos étnicos de Yolanda, reflexos sombrios da guerra, resultam em obras icônicas de ambos, com caligrafias distintas. Pogrom (1937) e Navio dos Imigrantes (1931-1941), do artista lituano, denunciam os horrores dos conflitos de forma contundente, uma tomada de posição política, enquanto a série de aquarelas Memórias, da década de 1940, analisa Maria Alice, expressa os sentimentos de Yolanda diante da barbárie, mas não tem caráter de manifesto. “Para além da temática comum, em suas obras há semelhança na estrutura compositiva e particularidades no tratamento plástico, como a notável premeditação de Segall em contraste com a espontaneidade de Yolanda.”

A São Paulo que a artista recém-chegada compara a “uma grande aldeia, com o Martinelli, o único arranha-céu, no meio”, é retratada em aquarelas, técnica que domina à perfeição. Os bondes na Avenida São João, a Lua baça no céu da metrópole pouco povoada, a íngreme ladeira do bairro do Sumaré, o verde que envolve a Ladeira da Memória. Aos poucos Yolanda se coloca entre seus pares, participa de salões de arte, ganha prêmios e se torna conhecida.

É com bom humor que registra as dificuldades iniciais: “Lembro-me que num desses salões, um óleo meu foi pendurado sobre a porta que levava aotoilette. Na exposição seguinte, fui ‘promovida’ e me penduraram nas colunas”. Apesar do temperamento acanhado, não demora a ser acolhida pelo grupo do múltiplo Flávio de Carvalho, cujo ateliê perto do Viaduto Santa Ifigênia abriga Di Cavalcanti, Antonio Gomide e Carlos Prado.

Em 1945, Yolanda faz sua primeira individual no Instituto dos Arquitetos do Brasil. O convite parte do arquiteto Rino Levi, que com ela integra o Grupo Sete, formado ainda por Antonio Gomide, Elisabeth Nobiling, John Graz, Regina Gomide e Victor Brecheret. Entre os críticos alguns ainda apontavam submissão de Yolanda à influência de Segall. Sérgio Milliet, que admirava seu talento de aquarelista, “reclamou-lhe mais ousadia”. Veio de Tarsila do Amaral a avaliação mais bem alicerçada.

“Revela-se a pintora uma forte personalidade, senhora absoluta da cor e do desenho. Se às vezes o seu traço lembra, pela figura, a sensibilidade de um Modigliani, ou as suas composições, pelos modelos e pelo gosto quase decorativo, um Gauguin, e certas paisagens bucólicas, as últimas coisas de Segall, convém notar que nem sempre se trata de influência. São resultantes de um clima pictórico comum a todos neste instante de pesquisa, de inquietação e de revolução plástica”, escreveu no Diário de São Paulo.

A história artística de Yolanda está ligada à da Bienal de São Paulo. Esteve presente nas 11, entre 1951 e 1971. “Sua participação encerrou-se com uma sala especial na comemoração dos 20 anos da instituição. Essas duas décadas constituem o período de maior prestígio da Bienal, quando apontava tendências e consagrava artistas. Nessa época, ser admitido em suas salas era a ambição de todos que pretendiam fazer carreira no restrito meio dos museus, galerias e colecionadores. Ser premiado era a glória.”

Por mais de 20 anos Yolanda foi figurativa e sua transição para a abstração se deu de modo gradual. A década de 1950, diz Maria Alice, foi um lento caminhar à nova fase pictórica. “Em 1961 ela acertou o passo com a tendência dominante, o abstracionismo lírico, conhecido informalmente como tachismo (de tache, mancha, em francês). Trinta anos depois da chegada ao Brasil, começava a ser verdadeiramente reconhecida como a grande pintora que era.” Definidora foi a viagem a Arezzo, Itália, em 1957. Diante da monumentalidade dos afrescos de Piero della Francesca na Basílica de São Francisco, Yolanda julgou inútil persistir na representação figurativa. Em 1963 recebeu o Prêmio Nacional de Pintura, que a consagrou como artista abstrata.

Publicado en Carta Capital
También podría gustarte