La melomanía antes y después de la era digital

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Compositor, instrumentista e professor de capoeira, Rodrigo Dias é um consumidor de música totalmente adaptado à era digital. Web rádio, YouTube, WhatsApp, streaming. “São ferramentas maravilhosas, barateiam e agilizam a divulgação do meu trabalho”, atesta o paulistano de 31 anos. Caio Ferreira, que aos 17 anos inicia a vida profissional como cabeleireiro, nunca comprou um CD e não tem notícia de amigos que tenham desembolsado 1 real com música.

“Baixo pelo celular. É de graça.” O motorista Erick Anderson começou a adquirir CDs aos 16 anos e aos 29 engrossa o time dos adeptos do YouTube e de aplicativos como Spotify e Apple Music. “Por 14 reais mensais ouço tudo o que quero.” 

Dias, Ferreira e Anderson se encaixam no perfil do consumo de música online revelado por relatórios divulgados pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica e a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD). As receitas do mercado global de música gravada cresceram 3,2% em relação a 2015 e atingiram 15 bilhões de dólares.

Na gangorra ocupada por dois mundos, o analógico e o digital, as vendas físicas mundiais caíram 4,5% no ano passado, enquanto as receitas digitais subiram 10,2% e representam mais de metade do faturamento em 19 países, Brasil incluído.

O presidente da ABPD, Paulo Rosa, explica o estrondoso avanço do streaming, formato que cresceu 192% em relação a 2014 e colocou essa forma de distribuição musical no topo do mercado digital brasileiro.

“Por ser barato, prático, funcional, de fácil acesso e conter quase todas as músicas gravadas no mundo, o streaming leva parte importante do público consumidor a privilegiar cada vez mais essa forma de acesso em lugar da posse desse mesmo conteúdo em formatos físicos ou mesmo em downloads.”

Rosa não decreta a extinção do CD ou dos downloads. “Ao contrário, vemos no físico o ressurgimento do vinil, restrito ainda aos maiores mercados do mundo, mas com claros sinais de ocorrer por aqui. E há um mercado mundial ainda bastante consistente de CDs e DVDs musicais. No caso dos downloads, o formato continua, tanto pela internet quanto pela telefonia móvel, a ser o maior gerador de receitas do mundo digital, mas deve ser superado pelo streaming no próximo ano.”

Ele não associa o fenômeno às novas gerações, percepção que julga superficial e equivocada. O mercado de streaming, argumenta, é formado pelo público conectado de qualquer idade. Os mais velhos usam as mesmas ferramentas que os mais jovens para participar do mundo digital. 

No caso do arquiteto Walter Pires, de 60 anos, se por um lado a agilidade e o amplo repertório das plataformas digitais são grandes atrativos, por outro tornam o consumo dispersivo, casual e descartável. “É limitante. Quem nasceu na era dos LPs tem fetiche pelo objeto. Uma capa como a do álbum Sticky Fingers (1971), dos Rolling Stones, com o zíper de um jeans de um homem pronto a ser aberto, representava uma arte contestatória. Tratava-se de um objeto gráfico artístico concebido por Andy Warhol.

O duplo The Beatles (1968), o icônico álbum branco, trazia um pôster enorme. O CD Pulse(1995), de Pink Floyd, tinha uma luz de led piscante na caixa. São artifícios, experiências ainda não existentes nas plataformas digitais. Há os vídeos via YouTube, mas a abordagem é outra.”

De acordo com Pires, muitas obras a partir dos anos 1960 passam a ter caráter de concepção integrada, coletiva. “Tropicália (Caetano Veloso, 1968), Clube da Esquina(Milton Nascimento e Lô Borges, 1972), Milagre dos Peixes (Milton Nascimento, 1973), Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Beatles, 1967) e discos de Frank Zappa faziam muito isso.

Dança das Cabeças (1977), de Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos, era um vinil com duas longas faixas e oferecia outras possibilidades de emoção. Ouvir um disco exigia um equipamento fixo num determinado ambiente, uma interação concentrada pessoal ou uma fruição coletiva.”

Consumidora de música em tempo integral, Erika Morais, 37 anos, construiu um caminho equilibrado entre os dois mundos. Recorre à praticidade do streaming via Spotify e YouTube, mas não passa um dia sem ouvir um dos muitos vinis comprados ao longo dos últimos dez anos. No quesito disposição para entender a obra como um todo, concorda com o arquiteto.

“Muita gente dessa geração streaming é incapaz de escutar um álbum inteiro. Ouvem somente os hits, só têm paciência para playlists. Gosto das listas, conheci muita coisa boa assim, mas me acrescenta muito mais ouvir uma obra completa, da primeira à última música, entender o modo como foi pensada e organizada. Nesse ponto, o LP faz a diferença.”

Assinante de uma conta premium do Spotify, cujo anúncio apregoa ausência de propaganda, possibilidade de ouvir música off-line e transmissão de alta qualidade, Erika, que trabalha como social media, elogia a praticidade e facilidade do streaming, “quem sabe procurar acha de tudo na internet”, mas critica a falta de excelência do som. “Para ouvir na rua e no carro dá.” Há anos não compra CD.

Se ela há muito abandonou esse hábito, o jovem cabeleireiro Ferreira nem chegou a adquiri-lo. Quando não está de tesoura em punho, é quase certo encontrá-lo de fone no ouvido e smarthphone na mão.

“Ouço funk, eletrônica, rap e sertanejo. Meus amigos também só ouvem música pelo celular. Nunca comprei um CD nem um bolachão.” Dinheiro curto, condição de quem enfrenta início da vida profissional, e tempo reduzido pela jornada entre o curso de especialização e o salão onde a mãe, Elizabete Ferreira, burila o talento do filho, ele passou a curtir música aos 11 anos. E não pretende parar. 

A bordo do carro em que conduz passageiros do Uber, Anderson conta que aprecia reggae, rap e samba, tudo digital. “Gosto de músicas que falem da realidade, da periferia, do rico, do pobre.” O interesse inicial foi despertado pela black music. “Hoje, tenho poucos CDs, muitos amigos pedem emprestado e não devolvem. Só compro quando vou a um show e quero incentivar o artista.” Pires, em contraste, tem mais de 1,5 mil discos e cerca de 600 LPs.

O arquiteto vai continuar a comprar e, num mercado cada vez mais rarefeito, aproveita para garimpar raridades descartadas. Sem tom de nostalgia, relembra as tardes de adolescência compartilhadas com amigos numa garagem de bairro para ouvir discos. “Era uma curtição coletiva, hoje essas mídias são individuais.”

Rodrigo Dias, empenhado pesquisador e divulgador do samba na periferia, cujo projeto Balaio de Samba de acompanhamento de figuras emblemáticas do gênero há três anos ocupa a Casa de Cultura Salvador Ligabue, na Freguesia do Ó, afirma que para os independentes não há forma melhor de divulgação que as plataformas digitais.

“Temos há dois anos uma web rádio do Projeto Vivendo a Cultura do Samba, que congrega 500 ativistas. Se fosse por gravadora não seria viável, por causa do preço alto do produto. Além disso, o retorno é mais rápido. Não vou mais produzir material físico, será tudo pela internet. Por meio dela tenho contato com ouvintes em Taiwan, nos Estados Unidos e na Tailândia.” 

A divulgação digital reduz os custos em 70%. “O trabalho fica mais informal e não perde qualidade”, atesta o cavaquinista, cujo acervo sonoro de cerca de 500 CDs não vai parar de crescer.

“Meu consumo digital não interfere no meu gosto pelo analógico. O som do vinil é único, mas não significa que o MP3 não presta. Graças a ele minha música vai para o exterior.” O retorno financeiro dos desvinculados das grandes empresas mostra-se mais equilibrado. “Há dez anos, ou você era popstar ou músico de garagem.” 

*Reportagem publicada originalmente na edição 899 de CartaCapital, com o título «Entre dois mundos»

Publicado en Carta Capital

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