La experimentación de Candido Portinari

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Candinho não conseguia dormir. Seus olhos fustigados rememoravam o ocorrido. O menino que jogava futebol com ele no campo arenoso não era mais um menino. Uma picada de cobra, um prego enferrujado, uma febre, e seu corpo jazia lá, carregado pelos homens de chapéu até a última morada, palmos abaixo da terra roxa do cafezal. 

O enterro nas redes era o pior espetáculo que, tão criança, presenciara na Brodósqui de seu nascimento. E de noite, na cama, impressionava-se por inteiro. “Sabe por que eu pinto tanto menino em gangorra e balanço?”, escreveu Candido Portinari, muitos anos depois. “Para botá-los no ar, feito anjos.”

O segundo entre 12 irmãos de uma família de imigrantes italianos, Candinho só brincava sério. Criança, sem parecer maroto ou herói, fazia naturalmente o que era inalcançável aos outros. Desenhava um rosto em minutos. Não aprontava com ninguém. Em lugar disso, passeava. E cambeteava cabisbaixo enquanto raciocinava outros mundos.

Se não entendermos Portinari menino, talvez jamais compreendamos sua obra adulta fecunda, que caminhou por 5 mil composições, seis centenas delas, retratos. Suas figuras humanas vinham da amizade, da admiração popular ou da proeminência. Muitos retratados contribuíam para o pagamento de suas contas de artista enquanto ele experimentava.

Provou representações, estilos, formas, dimensões, até improváveis geometrias figurativas, porque precisava expressar uma infância plena de alegria e medos. E porque era um virtuose. Sua obra tão vasta recobrou essas narrativas de jogos e brincadeiras, o estupor diante da lua alta, também transposta às paisagens cariocas das favelas. Via tudo com poesia, equilíbrio, síntese.

Compunha versos, mas não se achava poeta, ele que terminara os estudos fundamentais no terceiro ano primário. “Quanta coisa eu contaria se pudesse e soubesse ao menos a língua, como sei a cor.”

Os quadros de Portinari narram histórias e se encenam como épicos, quase esboços do que comporia no muralismo, entendido como sua verdadeira vocação, a exemplo do painel Guerra e Paz, concluído para a sede da Organização das Nações Unidas em 1956.

Esta é a grande lição tirada das 52 telas agora expostas pelo Museu de Arte de São Paulo, uma instituição que guarda plena identidade com o pintor e mantém, em seu acervo, 18 das obras em exibição.

Em 1948, quando Portinari completava 45 anos de idade, o Masp abria as portas com uma mostra de seus quadros. E, em 1970, a arquiteta Lina Bo Bardi reunia cem de suas telas a partir de uma expografia agora recuperada, a mimetizar os cavaletes em madeira. 

Portinari Popular, que permanece em cartaz até 15 de novembro, explora em grande parte o artista a reinventar sua infância particularmente feliz, que, contudo, não prescindia da dor, da empatia com o sofrer alheio, do reconhecimento de uma solidariedade entre as mulheres. E, mais, a exposição é uma rara maneira de alcançar a complexidade de um pintor que jamais recusou a tradição, disposto, contudo, a fazê-la crescer ancorada, em harmonia. 

O óleo sobre tela Baile na Roça, que outrora se tinha por desaparecido, mas era mantido em coleção particular, como ocorre a 85% da obra do artista, traz o impensável. Em sua primeira representação de uma cena brasileira, a pincelada impressionista reproduz o movimento dos dançarinos sob um fundo em tons quentes que se desfaz, à moda das lembranças. Na tela, a figuração seu pai.

E um homem de chapéu parece evocar o escritor Mário de Andrade, que Portinari conheceria depois e retrataria em uma tela de profundo azul, algo surrealista, com a distante festa de São João ao fundo, em 1935. Por sua abordagem distante do academicismo brasileiro, que, contudo, o pintor apreciava, ou por seu tema popular, o quadro foi recusado pelo Salão Oficial da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1924.

Portinari contava 21 anos então, mas sabia demais. Iniciara-se no ofício aos 10, discípulo de pedreiros muito mais velhos que ele, responsáveis pelos ornatos na Igreja Matriz de Brodósqui. Era o primeiro a chegar ao trabalho, o último a sair, o mais entusiasmado ao talhar, diziam os companheiros.

Sua grande habilidade, portanto, fora forjada na dificuldade escultural. Quando completou 15 anos, seus pais o encaminharam a uma pensão de gente pobre na Vila de Laranjeiras, para que estudasse pintura no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes.

Em 1928, um prêmio pelo retrato do poeta Olegário Mariano o levou a dois anos parisienses, durante os quais, em lugar de fazer vida boêmia, estudou os mestres do Renascimento e da Escola de Paris. Com Giotto aprofundou seu entendimento de composição. Piero della Francesca o ensinou a imobilizar os personagens, a desdobrá-los em diversas ações.

Tímido, quieto, de sotaque caipira italianado, Portinari almejou a representação do trabalhador brasileiro, como lembra a curadora-assistente da exposição, Camila Bechelany. Ela atuou junto ao Projeto Portinari para obter o empréstimo de raras peças. “Nos anos 1930, Portinari começa a destacar a figura, os exageros das mãos e dos pés”, diz.

“Enquanto O Derrubador Brasileiro, de Almeida Júnior, é um tipo idealizado, os brasileiros de Portinari tendem a uma caracterização geral. Seu brasileiro é um qualquer.” Na exposição, quadros como O Lavrador de Café, de 1934, evocam a figura do mestiço, neste caso representado pelo modelo Newton Rodrigues, seu moldureiro.

A empregada Mercedes originou a tela em que aparece um procedimento muito repetido por ele. O pintor faz o fundo com técnica diferente daquela aplicada à figura, neste caso composta por uma pincelada em vírgula, algo devedora do impressionismo.

Portinari era, assim, uma escola do pintar, senhor do repertório de todas as épocas. No óleo sobre tela Favela (1958), por exemplo, revela a habilidade geométrica ao retratar o morro, sem perder (em lugar disso, ressaltar) o sentido figurativo.

Havia quatro anos se sabia doente, embora andasse no auge da procura artística. Enfrentou com luvas e melancolia os primeiros sinais de uma intoxicação pelo chumbo contido nas tintas: “Por que tanta treva nestes dias de sol? A morte deve ser bela. Existirá? Galopamos na mentira que nos engana”. 

Quando morreu, em 1962, ainda pintava Carajá, figura indígena sem rosto. Ele conheceu e retratou a tragédia, como anotou o amigo Graciliano Ramos em carta. “Numa vida tranquila e feliz, que espécie de arte surgiria?”, perguntou-lhe o autor de Vidas Secas.

“Chego a pensar que teríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza. Felizmente, a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela, não lhe parece? Veja como os nossos ricaços em geral são burros.”

Para Graciliano, o público de Portinari morava dentro dele próprio. “Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.”

Publicado en Carta Capital

Masp reúne os negros e índios do país desigual de Candido Portinari

Lado a lado, abrindo uma grande mostra dedicada a Candido Portinari agora no Masp, estão três telas retratando o mesmo modelo. De longe, ele é «O Lavrador de Café», visto de corpo inteiro, enxada na mão. Num plano mais fechado, de braços cruzados, ele é «O Mestiço», enquanto um close derradeiro destaca só a sua «Cabeça de Mulato».

Numa sequência quase cinematográfica, o artista desdobra sua visão sobre um personagem que também se tornou múltiplo em sua obra –o trabalhador ou tipo popular, quase sempre marginalizado.

Embora sejam todas do mesmo ano e retratem o mesmo homem –Portinari fez os três quadros em 1934–, o olhar do modernista, que morreu aos 58, em 1962, nunca se desprendeu dessas figuras, fazendo desse modelo em particular um arquétipo de todos os seus homens e mulheres da roça e do morro.

É fato que o artista também pintou montanhas de retratos de endinheirados brancos, mas seu olhar sobre negros e índios, que oscilam entre a tragicidade e a celebração, entrou para a história quase como sinônimo de brasilidade, de um povo sofrido que se esforça para nunca perder a leveza.

Nesse sentido, a seleção de obras de Adriano Pedrosa, diretor­artístico do Masp, e dos curadores Rodrigo Moura e Camila Bechelany, não esconde o desejo de enquadrar Portinari como o artista moderno mais sensível à questão racial no Brasil, ou mesmo, o mais «engajado», como lembra Pedrosa, na construção de uma obra plástica que revela sem rodeios e cheia de exuberância as fricções que alicerçam a desigual sociedade brasileira.

Não por acaso, o cartaz da mostra já traz aquele lavrador­mestiço­mulato olhando para uma tela inacabada, a última de Portinari, que retrata uma boneca dos índios carajás.

Essa figura de uma índia estilizada, tal qual os objetos esculpidos pela tribo, seria não só o outro extremo do espectro de raças excluídas a povoar suas composições mas também um exemplo de como Portinari foi um artista múltiplo, que flertou com o cubismo, o concretismo, o muralismo e tantas outras vanguardas sem se filiar a nenhuma delas.

«É um Portinari antropofágico, que canibaliza todas essas referências», observa Pedrosa. «Nos parece apropriado olhar para ele numa perspectiva mais global. São personagens todos negros, mestiços, mas ele faz isso de várias maneiras, mais geometrizada, uma coisa mais romântica, mais trágica, mais dramática.

PLURALIDADE

No subsolo do museu, onde as telas estão penduradas e enfileiradas em finas hastes de madeira, todos esses lados de Portinari saltam aos olhos ao mesmo tempo, enfatizando a pluralidade dessas suas pesquisas estéticas.

Vistas em ondas marcadas por temas específicos –na primeira leva, o lavrador e suas variações, depois crianças brincando, festas populares na favela e, por último, seus famosos retirantes–, as obras também revelam como Portinari arquitetou um universo visual em que prevalece seu foco no que Pedrosa chama de «narrativas populares, indigenistas, locais e rurais».

Mas nem sempre reais. Em muitas telas, Portinari construiu um mash­up visual da roça de terra vermelha de sua Brodósqui natal, no interior paulista, e os morros do Rio, onde se radicou. Esse tom avermelhado, aliás, domina grande parte de suas obras dos anos 1930, em que o morro quase radioativo em tons quentes no primeiro plano afoga um tímido mar azulado que se insinua ao fundo.

PARAÍSO INCERTO

Na década seguinte, esse azul ganha corpo e passa a dominar fundos que beiram a abstração, numa gradação glacial que emoldura o desespero de seus personagens. Debaixo desse céu, eles parecem flutuar sobre extensões áridas, de ocres e vermelhos, pontuadas por caixões de criança ou ossadas de boi.

O traço fugidio, linhas negras que se desprendem do volume das figuras, sugere uma espécie de ascensão, como se Portinari flagrasse seus miseráveis entre a vida e a morte, já rumo a um paraíso incerto.

Todo esse sofrimento parece atingir seu ápice no aspecto geometrizado de seus retirantes cadavéricos rodeados de urubus. Últimas telas da mostra, elas chamam a atenção lá do fundo da sala, como um farol às avessas, ou destino incontornável. Essas são, aliás, as obras mais fotografadas do museu e mais compartilhadas nas redes sociais.

Publicado en Folha de S.Paulo

 

 

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