Los manifiestos de los 70

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Durante o governo do general Médici, uma canção sobre política não passava despercebida, ainda que desse bandeira com atraso. O compacto Apesar de Você de Chico Buarque vendeu 100 mil exemplares em uma semana antes de a ditadura perceber o erro e mandar recolher as cópias.

Álbuns tinham uma vantagem sobre compactos. Neles, as canções podiam conversar ao pé do ouvido. Se embalassem uma mesma composição, os versos «Limpe o sangue das mãos» e «não deixe o caçador mirar em cima de você» poderiam até acender o alerta de um censor mais obsessivo.

Como são trechos de canções distintas, é impossível entender a faceta política do «Disco do Tênis», de Lô Borges, sem ouvi-lo na íntegra. Cada peça vale o quebra-cabeça do espírito de seu tempo, montado às pressas em 1972 por um garoto de 19 anos. Ao tratar sem esforço sobre o «desbunde» daqueles anos, o disco diz muito sobre a letargia do Brasil atual.

Nos últimos 45 anos, o álbum percorreu vitrolas, CD players e serviços de streaming com o Adidas encardido de Lô Borges estampado na capa. Em 2017, o músico tem apresentado na íntegra seu primeiro álbum para plateias de diversas cidades do País. Neste sábado 16 e domingo 17, volta mais uma vez a São Paulo para relembrar a obra em shows no Sesc Pompeia, organizados pela Viajeira Produções.

Caçula, mas protagonista da turma do Clube da Esquina, Lô tinha apenas 19 anos quando gravou seu primeiro disco solo. Compunha as canções de manhã e as gravava à noite. Em algumas letras, contou com a ajuda dos amigos do movimento musical mineiro, em especial a de seu irmão Márcio Borges, mas muitas eram de sua autoria. O imediatismo e a urgência da gravação captaram algo no ar: o «disco do tênis» é um eterno manifesto sobre tempos difíceis.

Termo na moda nos anos 1970, o desbunde era perjorativo ou elogioso, a depender do ponto de vista de quem usava. Entre os integrantes da luta armada, associava-se àqueles que desistiram da resistência à ditadura. Em Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua, de 1973, o compositor Sérgio Sampaio resume o sentido em um verso: «(Há quem diga) que eu morri de medo quando o pau quebrou». 

 

Nos círculos artísticos e intelecutais, o desbunde designava uma certa liberdade criativa e debochada para misturar elementos pop e eruditos, algo que a Tropicália e o Clube da Esquina guardavam em comum. O desbunde no início dos anos 1970 era acima de tudo hippie, associado ao amor livre e à discussão dos papéis sexuais e identitários.

O Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô e Márcio Borges, Flávio Venturini, Toninho Horta, Fernando Brant, Beto Gudes e Wagner Tiso buscava uma resistência distinta da luta armada. O início dos anos 1970 é cheio de exemplos de bandas-comunidades que aliaram música a uma solidariedade rara em tempos de repressão.

O fenômeno era nacional. Os Novos Baianos eram o exemplo mais concreto de grupo musical que se confundia com comunidade hippie. Em Pernambuco, o disco experimental Paêbiru reuniu Lula Cortes, Zé Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. O «pessoal do Ceará» vinha com Fagner, Ednardo e Belchior.

Todas manifestações orgânicas que buscavam combinar tradição local com Beatles, psicodelia, rock progressivo e sons estrangeiros. Como no Clube da Esquina, a amizade funcionava como instrumento de resistência cultural e, por que não, política.

O «disco do tênis» adapta-se aos dois significados de desbunde. Sem esforço ou proselitismo, traz figuras que remetem à letargia política da época. «Aprendi a ser como o meu gato/ Que descansa com os olhos abertos», canta Lô Borges em Como o Machado,letra de sua autoria.

Em Aos Barões, descreve pessoas na rua que com ele ficam «esperando uma coisa»: «Eu não sei o quê». Uma festa não apaga «um estranho silêncio na rua», resume em Homem da Rua. Por outro lado, o desbunde não é nada mal. «Você fica bem melhor como está», garante na faixa de abertura, «colorindo o espaço em branco que ficou desde dezembro».

O tênis da capa do disco é, como o próprio Lô Borges revelou recentemente, uma despedida, um pé na bunda no esquema de gravadoras em nome de uma vida hippie. O compositor só voltaria a lançar um álbum sete anos depois. À sua maneira, também «desbundou».

A efeméride de 45 anos não é suficiente para assinalar a grandeza do «disco do tênis», que capta a tão atual letargia de ruas esvaziadas, de pessoas «que ficam esperando uma coisa» sem saber o quê. A movimentação de 1968 não resistiu ao endurecimento da ditadura na década seguinte. Os grandes atos de 2013 a 2016 desaguaram em enorme apatia política. Em ambos os períodos, «um estranho silêncio na rua» persiste.

Publicado en Carta Capital
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