Egberto Gismonti, cantautor brasilero: «En este momento, no tenemos nada para admirar»

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Por Pedro Alexandre Sanches

Quando, aos 25 anos, Egberto Gismonti inventou uma canção “encrencada” chamada Janela de Ouro (A Traição das Esmeraldas), não sabia que prefigurava a própria trajetória no mundo. “A janela do mundo é o Carmo, rapaz”, afirma, 45 anos depois, pelo telefone, do Rio de Janeiro, onde mora. Refere-se à pequena cidade fluminense onde nasceu, na divisa com Minas Gerais, fruto do encontro improvável de um imigrante libanês com uma imigrante italiana, ambos acostumados a “dar ordens”.

Em 25 de fevereiro, no palco paulistano do Bourbon Street, Egberto comemorará discretamente 70 anos de vida e 50 anos desde que debutou no Festival Internacional da Canção, sob o pesadelo da iminência do Ato Institucional no 5, como autor de uma canção denominada O Sonho, que abriu a janela de sua obra para as vozes de Elis Regina, Maysa, Flora Purim, Johnny Alf e incontáveis intérpretes mundo afora.

De lá para cá, a palavra perdeu volume no corpo de sua obra. A exemplo do que aconteceu com outros instrumentistas, como Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Eumir Deodato e Naná Vasconcelos, o mundo tornou-se mais aprazível para Gismonti do que a janela lateral do quarto brasileiro de dormir.

Curiosamente, a palavra é mote do projeto em que ele trabalha atualmente, o de musicar oito letras entregues nos anos 1960 pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa à cantora carioca Dulce Nunes, e até aqui engavetadas. Outro sonho em forma de janela que acalenta é o de abrir uma fenda na internet para entregar aos “malucos” que amam sua música, gratuitamente, tudo que criou. Museu Ativo seria, ou será, o nome da próxima janela.

CartaCapital: O que havia na cidade de Carmo que explicasse sua trajetória?

Egberto Gismonti: Meus pais imigraram para o Brasil, ele de Beirute, no Líbano, e ela de Catânia, na Itália. Resolveram, pelo destino, abandonar seus países, o que é sempre uma história muito emocionante, e teriam tido a sorte extraordinária de se encontrarem no Carmo. Sou filho dos italianos, que gostam de ficar rindo, falando alto e tocando violão, e dos libaneses, silenciosos, autoritários, machistas, que tocam piano.

Teoricamente, não daria certo um pai machista que dá ordem com uma mamma italiana que dá ordem também. Mas a gente aprende que toda forma de amor vale a pena, e eles criaram três filhos sob princípios malucos. Meu pai dizia que os filhos deveriam aprender música, idiomas e contabilidade. Graças a isso, administro três editoras, duas gravadoras.

Eu queria ter o direito de comercializar meus discos gravados nos anos 1970, e ninguém tinha conseguido sentar com o inglês que administrava a Odeon para negociar isso. Tive essa alegria, e ele ficou relutante, pediu que eu desse uma razão para negociar meus direitos, que pertenciam a ele, para vender minha música no território dele.
Jovem Guarda
Em 1977, a música “encrencada” do compositor encontrou-se com a Jovem Guarda de Wanderléa e resultou no manifesto musical fluminense-mineiro chamado Vamos Que Eu Já Vou
CC: Qual foi a sua resposta?

EG: As respostas melhores são as mais simples, apesar de difíceis de descobrir. Ele, certamente, já conhecia a resposta, conhecia meus discos para o selo alemão ECM e sabia que vendiam naquele aspecto “de grão em grão a galinha enche o papo”. Respondi, tremendo feito vara verde: “Meu caro senhor, o senhor prefere receber 100% de nada ou 2% de uma cotinha mínima? A música é igual. Vocês não gostam dessa música e não sabem vendê-la. Eu gosto e sei”. E foi assim.

Pratico com minha obra algo que chamo de gratuidade. O projeto maior que fiz e não consegui colocar ainda à disposição se chama Museu Ativo. A ideia é disponibilizar àquele que procurasse o meu nome na internet uma página com uma janela onde o usuário escrevesse o nome de uma das músicas do Gismonti de que gosta. No que escreve, esse negócio processa e aparece na frente dele uma árvore imensa, e tudo que me pertencer estará disponível para baixar gratuitamente. Mas eu precisaria de três máquinas de aceleração, que custariam 400 mil dólares em dez anos. Até aí eu fui e não pude continuar, porque é muito dinheiro. Mas estou procurando e vou conseguir, espero. É o ensinamento que vem lá do Carmo.

CC: Demos a volta ao mundo e voltamos para o Carmo…

EG: A janela do Carmo é o mundo, rapaz. Meu pai era coletor federal, além de árabe, que gosta de vender e comprar coisas. Vendia pianos, afinava pianos. Por conta disso, saímos do Carmo, que é quase fronteira com Minas Gerais. Eu brinco com isso, porque a gente tem o sotaque de Minas lá no Carmo, e teima em dizer que “nóis num somo minêro, não, uai”..

CC: No disco que fez com a mineira Wanderléa, o lado mineiro é evidente. Ela é tida como muito popular e você, como muito erudito. Essas fronteiras não existem?

EG: Ah, a Léa é uma beleza de pessoa, uma grande amiga. Quando nós vivemos juntos e fizemos disco juntos, existia um pouco essa divisória. Quando a gente ficou casado, muita gente do chamado meu lado da história não era muito simpatizante, “puxa vida, Jovem Guarda”. É uma mulher muito reta, de uma dignidade absoluta. Infelizmente, o disco não teve o resultado que se desejava. Naquela época, a liberdade artística que tínhamos era imensa.

Cada disco meu na Odeon é mais encrencado que o outro. Academia de Danças (1974) levou todo tipo de crítica da superintendência inglesa, que disse: “Esse disco não tem jeito”. Minha música sempre foi considerada complicada, mas Dança das Cabeças (1977) está colado a 1 milhão de cópias. Continua sendo a mesma música confusa de sempre, mas tem 1 milhão de malucos por aí que gostam de ouvir.

CC: Você começou cantando, mas com o tempo a voz foi desaparecendo.

EG: Cantava também porque não tinha quem cantasse. Nunca gostei. Você não imagina o sofrimento que era para mim quando ia cantar, por medo. Mas tem gente como o diabo que gravou música minha, Elis Regina, Regininha, Alaíde Costa, Agostinho dos Santos, Johnny Alf, Maysa.

CC: Mesmo sem usar tanto a palavra, você e outros instrumentistas se exilaram na ditadura, e a música de vocês acabou mais difundida fora do Brasil.

EG: Cada um de nós passou por momentos de dificuldade em relação ao processo político que tivemos, ao sistema militar. No início da década de 1970, a repressão existia, já estava determinada, mas não se viviam 24 horas por dia o sentido e o sentimento dela. Foi o AI-5 que determinou que a guerra iniciou para todos, tchau. Fui embora para a Europa, mas não tinha nada a ver com fugir do Brasil.

Nas reuniões que os jovens marcavam na Ilha do Fundão, e eu lá estava, de vez em quando chegava a polícia com cavalo, baixando o porrete, baleando pessoas. Duas vezes eu e Tom Jobim fomos apanhados em casa para irmos para o Dops no mesmo camburão. Ele diz: “Ô, Gismonti, mas que prazer em revê-lo”. E eu: “Você não sabe que prazer tenho eu, porque com você estou com o papa, com você não sumo”. Quem tem hoje 70 anos em diante sabe o que é sair correndo porque a polícia está chegando, sem razão específica nenhuma.

CC: Que paralelo faria entre 1968 e hoje? Estamos de novo numa ditadura?

EG: Está um horror. Eu não chamaria de ditadura, porque ditadura a gente conhece. Neste momento, nós não temos sequer algo para admirar em contrapartida ao que a gente odeia. Eu poderia morar fora, como já fiz, mas estou brigando para não sair do Brasil. E só encontro coisas realmente estimulantes no Brasil relacionadas a pessoas que são sementes ou raízes.

CC: Sua música é totalmente nômade, mas você ficou no Brasil.

EG: Não saí do Jardim Botânico. Quem tem essa capacidade de não se deixar influenciar pela cultura estrangeira são Naná Vasconcelos, João Gilberto, Airto Moreira. Tenho morado mais na Floresta Amazônica do que na Europa ou nos Estados Unidos. Quando saio do Brasil, vou para um país melhor, que é o Xingu.

CC: Uma das vozes da sua música era da Dulce Nunes. Por onde ela anda?

EG: Recentemente, ela me disse: “Egberto, você lembra do disco que eu fiz, chamado Samba do Escritor (1968)?” É claro que lembro, Carlos Drummond de Andrade está sentado na capa com ela, imagina. Ela disse: “Eu tenho um presente para te dar. Você lembra que na época fez arranjos para duas músicas com letras do Guimarães Rosa? Pois é, o que eu nunca te falei é que ele me deu dez letras, e autorizou que eu fizesse tudo que quisesse. Estou te dando de presente oito letras”. Agora estou trabalhando, meu próximo projeto, que tem de ser gratuidade total, é fazer oito músicas para poder falar de Guimarães Rosa.

Publicado en Cartacapital
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