La historia que la historia no cuenta

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Conheça heroínas negras que a Mangueira foi buscar na história

Por Nirlando Beirao

Diretamente da “história que a história não conta”, sete mulheres guerreiras que todos precisam conhecer. Eu quero um país que não está no retrato… Chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

(Samba-enredo da Mangueira 2019)

Tereza de Benguela

No Brasil profundo e ignoto do século XVIII, ali onde o mapa identifica hoje o estado de Mato Grosso, prosperou a partir de 1730 o Quilombo do Piolho, assim chamado pelas autoridades por ser comandado por um negro apelidado de José Piolho. Quariterê era como o denominavam os quilombolas. Ao ceticismo que se seguiu à morte do líder, Tereza, sua mulher, respondeu com uma determinação inquebrantável e por duas décadas o quilombo resistiu às arremetidas das forças coloniais. O sobrenome de Tereza sugere que ela, ou seus antepassados, vieram de Benguela, no oeste de Angola. A liderança de Tereza era tão categórica que grupos indígenas das cercanias, igualmente perseguidos, vieram se abrigar junto aos negros rebelados. Em 1770, o quilombo não resistiu ao ataque da tropa de Luís Pinto de Souza Coutinho, e a população, Tereza incluída, foi chacinada.

Zeferina

Pouco se sabe dela, a não ser o primeiro nome e sua origem angolana. Chegou escrava em Salvador e só se soube dela depois, no ano de 1826, fundadora e líder do Quilombo do Urubu, não muito distante da capital. Zeferina era uma revolucionária impetuosa, achava que os negros só teriam paz se os traficantes e os grandes senhores de escravos fossem dizimados. Planejou um ataque a Salvador no dia de Natal daquele ano. Pretendia libertar todos os escravos da cidade. Um ataque prévio conduzido por tropas do governo desbaratou o plano e, embora tenha enfrentado os invasores com arco e flecha, como uma amazona, foi presa e acorrentada. Nunca se soube onde repousam seus restos mortais.

Luiza Mahin

Cantada pela Mangueira, ela foi figura exponencial nas duas mais sangrentas – e pouco estudadas – revoltas negras do século XIX. Como costumava acontecer com as escravas que chegavam nos navios negreiros, o sobrenome adotado indicava sua origem étnica e geográfica. Neste caso, Mahin sugere uma corruptela, ou uma versão de malês, pela qual se identificavam, em iorubá, os escravos de fé islâmica. Luiza foi arrancada da Costa da Mina, hoje Guiné-Bissau. Em Salvador, tornou-se uma respeitada quituteira, o que a facultava de ir de casa em casa para vender seus pitéus. Mas outra coisa Luiza preparava em fogo brando: arregimentava os negros fiéis ao Islã para a sublevação que acabou incendiando a Bahia nos dias 24 e 25 de janeiro de 1835. A Revolta dos Malês encontrou Luiza na linha de frente. A liberdade de culto – que era igualmente negada às religiões afro – era uma das suas reivindicações. A repressão foi brutal, mas os senhores de escravos passaram a respeitar a capacidade de articulação dos malês. Luiza Mahin escapou, mas, em 1837, estava de novo nas barricadas, comandando uma coorte de negros, na “Revolução do Doutor Sabino” – nos livros escolares, a Sabinada. Nunca mais foi vista. Pode ter sido presa e executada, ou deportada para a África. O filho ouviu rumores de que ela conseguira escapar para o Rio e a procurou na capital. Em vão. O filho era Luís Gama, o vibrante abolicionista. Aprendeu em casa.

Maria Filipa de Oliveira

A reação à independência do Brasil, proclamada por D. Pedro I, concentrou-se mais encarniçadamente na Bahia e teria se prolongado bem mais se não fosse uma heroína negra, da qual a historiografia branca bem que tentou esquecer. Maria Filipa (ou Felipa), moradora da Ilha de Itaparica e líder de uma brigada de homens e mulheres dispostos a bater de frente com as relutantes tropas portuguesas, fortificou o Recôncavo com trincheiras, distribuiu alimentos para os combatentes e acabou sendo responsável pelo episódio que definiu o conflito em favor dos brasileiros: botou fogo em 42 embarcações de guerra que, diante da Praia do Convento, preparavam-se para atacar Salvador. Conta a lenda que ela, em pessoa, castigou os dois vigias portugueses com chicotadas de urtiga.

Laudelina de Campos Mello

Tinha apenas 16 anos e era empregada doméstica quando, em sua Poços de Caldas natal (MG), assumiu a presidência do Clube 13 de Maio, agremiação cultural e de conscientização política dos negros da cidade. Foi o início de uma longa e destemida atuação, por onde quer que tenha passado, contra a exploração das trabalhadoras do lar, resquício de violência herdada da recém-extinta escravidão. Em 1936, morando em Santos (SP), filiou-se ao Partido Comunista e logo fundaria a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos do País. Teve seu valor simbólico, mas o momento não era dos melhores. O sindicato foi imediatamente fechado pelo governo Vargas, às vésperas do Estado Novo. Ainda na década de 30, ajudou a fundar aquela que se tornaria, com 30 mil filiados, a maior entidade do movimento negro da história, a Frente Negra Brasileira. Até sua morte, aos 86 anos, em Campinas, Laudelina militou ativamente na causa negra.

Maria Firmina dos Reis

Úrsula é o primeiro romance brasileiro a sair de mão negra. Publicado em 1859, traz consigo aquele mesmo ineditismo corajoso comparável aos das escritoras inglesas – as Brontë, Jane Austen, Mary Shelley – do início do século XIX. O desafio de Maria Firmina dos Reis, maranhense de São Luís, era ainda maior: mulher, negra, de origem modesta, professorinha do primário num país periférico, escravocrata e preconceituoso. Maria Firmina publicou o romance aos 34 anos. Um libelo contra a segregação racial e social, Úrsula tornou-se o livro de cabeceira das lideranças abolicionistas. Outra ousadia de Maria Firmina: ao se aposentar, em 1880, fundou a primeira escola mista gratuita do Maranhão, em Maçaricó. Foi tal o estupor que o colégio durou pouco.

Dandara

Citada no samba-enredo da Mangueira, ela contradiz a crença propalada pela historiografia branca de que os negros, no Brasil, aceitaram passivamente a escravidão. Dandara está no centro do mais extraordinário símbolo da resistência, o Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco. Os primeiros negros fugitivos começaram a se congregar por volta de 1605 e Palmares sobreviveu, incólume, ao longo do século XVII. Dandara, de quem se conhece apenas sua origem malê, ou seja, pertencia ao grupo de escravos islamizados trazidos do Noroeste da África, chegou por lá criança e se fez guerreira madura. Mestra em capoeira, perfilava-se com os homens nas frentes de batalha; em casa, cuidava de crianças e idosos e comandava as mulheres nas plantações. Foi mulher de Zumbi, com quem teve três filhos e lhe valeu a injusta notoriedade, quando devia ser o contrário: foi ela quem persuadiu o marido a não aceitar o acordo – uma rendição de fato – proposto pelos portugueses a Ganga Zumba. Zumbi assumiu a liderança de Palmares e estavam os dois, Dandara e ele, à frente dos quilombolas na luta contra os bandeirantes de Domingos Jorge Velho, em 1694. A resistência durou dias e noites. Para não se entregar aos carrascos, Dandara e Zumbi teriam se jogado do alto de uma pedreira.

(FOTO: EDITORA MALÊ / DIVULGAÇÃO)

Carolina de Jesus

No século XX, a guerreira que fez das letras sua arma foi Carolina de Jesus, mineira de Sacramento, filha de pais analfabetos. Órfã, desempregada e grávida do primeiro dos três filhos, ela se viu, em 1947, aos 33 anos, improvisando, em papelão, lata, pedaços de madeira, uma casa na favela do Canindé, em São Paulo, para onde migrou. A favela não existe mais. Carolina catava papel para sobreviver e ia anotando, num caderno escolar, as agruras cotidianas da vida de favelada. Em 1960, brotou daí o primeiro blockbuster da literatura brasileira, Quarto de Despejo, que vendeu em menos de uma semana a primeira tiragem de 10 mil exemplares. Teve edições em 14 países e mais de 1 milhão de livros vendidos. Carolina – que nunca se casou porque, dizia, casamento significa submissão a um homem – passou a ter uma vida de classe média, mas, ao deixar a favela, foi se recolher ao remoto bairro de Parelheiros, que evocava a roça onde nascera e crescera.

Aqualtune

Uma princesa africana, filha do rei Manimulaza I, ou Mani-Kongo 8, embarcada à força num daqueles cruéis navios negreiros, teria desaparecido “na poeira dos porões” (apud Mangueira) se também, assim como Dandara, não tivesse buscado asilo em Palmares. Foi uma das pioneiras no quilombo. Sua expertise, forjada nos conflitos tribais que, um dia, determinaram a derrota dos congoleses e a morte de seu pai, ajudou a formar um exército de guerreiras. Tornou-se uma estrategista em defesa. Deu à luz um filho, Ganga Zumba, futuro líder de Palmares, e duas filhas, Gana e Sabina, esta futura mãe de Zumbi – que um dia iria desafiar o tio Ganga Zumba pelo comando do quilombo. É possível que Aqualtune tenha, ao contrário do neto e da mulher dele, escapado do morticínio promovido pelo bandeirante Domingos Jorge Velho em 1694.

CartaCapital

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