Cintas inéditas

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Pesquisador da UFMT encontra em Cuiabá filme inédito de Nelson Pereira dos Santos destruído pelo tempo

Um rolo de 16mm em estado quase total de deterioração. Foi assim que o historiador José Amílcar Bertolini, 56, encontrou o filme “Cidade Laboratório Humboldt – 73”, do cineasta brasileiro Nelson Pereira dos Santos. O curta-metragem estava em Cuiabá, e foi produzido em 1973 pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) em parceria com a Regina Filmes. Até o momento, o pesquisador acredita que esta seja a única cópia disponível.

Amílcar é carioca, mora em Cuiabá há 40 anos, e é doutorando em história. Sua pesquisa é sobre a Cidade Científica de Humboldt, um projeto que foi instalado na cidade de Aripuanã (972km de Cuiabá) e que, segundo a dissertação de mestrado de Renata Neves Tavares, “propunha a existência de um centro de pesquisas, interessado em realizar estudos sobre a região, orientar o desenvolvimento social e econômico do Estado, sem causar grandes impactos sobre o ambiente. O lema era conhecer a Amazônia para então ocupá-la”. O projeto começou a ser implantado em 1973, ano em que o filme foi feito. De acordo com um artigo do professor Alfredo da Mota Menezes, a cidade científica recebeu muito apoio e tinha até casas pré-fabricadas, mas em 1975 o projeto, que era ligado à UFMT, “começou a ser enterrado”.

Historiador José Amílcar Bertolini (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Foi durante a pesquisa para sua pós-graduação – que teve que ser quase toda realizada no Rio de Janeiro – que o historiador descobriu a existência do filme. “Numa dessas pesquisas de jornal foi que, praticamente numa nota de rodapé, há aproximadamente dois anos, eu li que naquele período um filme havia sido realizado. Um filme de 16mm, sonoro e colorido”, contou ao Olhar Conceito.

Prontamente, o historiador procurou mais sobre o filme na Cinemateca Brasileira, e encontrou sua ficha técnica. Ali, teve mais uma grata surpresa: o filme havia sido produzido pela UFMT, mas dirigido por Nelson Pereira dos Santos, um dos maiores cineastas do Brasil.

Nelson (foto à direita) foi bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi um dos precursores do movimento do Cinema Novo, fundador do curso de graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense, e professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF. Dentre seus filmes está ‘Vidas Secas’, baseado na obra de Graciliano Ramos, um dos filmes brasileiros mais premiados em todos os tempos, reconhecido como obra-prima. Ele faleceu em abril de 2018.

Apesar de ter em seu acervo a ficha técnica, a Cinemateca não tinha o filme em si. Nem mesmo a produtora Regina Filmes, que é da família de Nelson, tinha – ou sabia da existência de – uma cópia. Foi só em abril de 2018, mesmo mês da morte de Nelson, que, em uma conversa com o ex-reitor da UFMT Gabriel Novis Neves, Amílcar descobriu que o rolo estava em Cuiabá.

“Segundo Gabriel, esse filme foi projetado apenas uma vez, pra seis pessoas dentro da universidade, e como foi exatamente no período em que o projeto encerrou-se, foi pulverizado – uma parte pro Pará, outra pro Amazonas – esse filme ficou na UFMT, enquanto produtora. Só que ele acabou entregando pra outra pessoa, pra essa pessoa cuidar”, lembra o historiador.

Amílcar conseguiu chegar até esta pessoa, assinou um termo e pegou o filme. Como estava com pressa, foi direto para o Rio de Janeiro, e encarou a realidade dos fatos somente quanto chegou à cidade maravilhosa. “Era uma lata de filme de 35mm e dentro um rolo de 16mm. Mas até ai tudo bem, porque você supõe que a pessoa responsável por isso havia guardado de acordo com as técnicas recomendadas”, lembra. “Quando eu abri a lata… eu até arrepio, porque pra gente que trabalha com documento, você se deparar com aquele tipo de mau uso, de mau trato, de falta de consideração, de desrespeito com a memória, com a cultura, com a história… é abominável”.

Situação do rolo encontrado por Amílcar (Foto: José Amílcar)

Apesar do susto, o pesquisador ainda tinha esperanças de fazer a recuperação da obra, pois lembrou-se que, quando trabalhou no Cineclube Coxiponés, esse trabalho era feito frequentemente pela mesma Cinemateca que guardava a ficha técnica do curta de Nelson.

“Entrei em contato com a Cinemateca Brasileira, e eles disseram que não estavam fazendo esse tipo de trabalho no momento porque o laboratório fisioquímico estava fechado. Entrei em contato com a Regina Filmes, a Regina Filmes não manifestou interesse em saber qual é o estado, nem falou se tinha cópia. Entrei em contato com a Cinemateca na Alemanha, na França, Portugal e Inglaterra. Ninguém se disponibilizou a fazer o trabalho”, lamenta. “Procurei, inclusive, técnicos, mas eu definitivamente cansei. Falei, bom, eu não posso mais usar meu CPF. Ele não é suficiente pra um trabalho dessa natureza”.

Em uma dessas conversas com um técnico, o historiador ouviu uma resposta dura: “Amílcar, eu sinto muito, mas se salvar alguma coisa aí não chega a 15%. e mesmo assim os fotogramas devem estar bastante prejudicados. Som? Nem imaginar, já foi pro laço”. Caso esse processo todo fosse feito, ainda, ele seria caríssimo.

A pesquisa do historiador enveredou-se por outros meios, e o filme foi devolvido para a UFMT. Agora, sua esperança é que alguém tenha uma cópia em melhor estado ou a matriz, não para que possa concluir seu doutorado – que já está em via de terminar – mas por respeito à memória do cineasta e do projeto.

“Esse é mais um documento importantíssimo, porém o que me deixou bastante triste foi exatamente o fato desse descaso descomunal com um documento, com a memória de um período extremamente importante pra história do Brasil, pra história de Mato Grosso, pra história da Universidade Federal. Se não houver outra cópia, e se ninguém localizar a matriz – se é que existe – perdeu-se”, lamenta.

“Eu nunca ouvi ninguém comentar sobre esse material. Ele foi guardado, foi esquecido, e esquecido ficou. Então por mais que a gente não consiga projetá-lo pra ver o que contém, eu creio que ele merece o respeito de ser reconhecido enquanto produto, enquanto documento, e a sociedade tem o direito de saber que isso foi feito, e também, quem sabe, vai que aparece alguém que tem uma cópia ou sabe onde está a matriz? O fato é a necessidade de dar luz a esse documento que ficou guardado tanto tempo no escuro, de uma forma mal condicionada”, finaliza Amílcar.

Olhardireto

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