Paraíba deconstruida

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A Paraíba desconstruindo a pauta de gênero

Por Manoel Herzog

Quando enuncio que “Trago comigo as dores de todos os homens” a audiência me presume um grande humanista, capaz de sentir compaixão pela dor da humanidade inteira. Dissesse eu “trago comigo as dores de todas as mulheres”, na melhor das hipóteses me diriam simpático à causa feminista e, nestes tempos de obscurantismo que vivemos, tenho medo de imaginar a pior hipótese. O machismo heteronormativo é de tal forma arraigado que até na língua os plurais são atraídos pelo masculino, exceção feita à palavra avô/avó.

O enunciado acima é o título do novo romance de um dos mais competentes escritores da atualidade, o paraibano Roberto Menezes, mas ele está a dizer que carrega a dor de todos os homens machos do sexo masculino, este espécime tão em baixa. Ou em alta, a considerar que no poder temos uma súcia de machos escrotos, opressores, corruptos, brancos, velhos, brochas e machistas pra cacete, causando toda sorte de silenciamento às minorias.

Me reporto à minha querida João Pessoa, capital paraibana e uma das mais literárias cidades do Brasil (e também nome da minha rua preferida na Santos doutros tempos). Lá vive uma dupla improvável, Roberto Menezes, escritor e físico nuclear de profissão, e Maria Valéria Resende, minha querida mestra, santista de nascimento, escritora e freira agostiniana de profissão. Não faz muito tempo lançaram um volume intitulado Conversas no Jardim, em que ambos refletem de maneira bem-humorada e erudita sobre literatura e vida. Falo no artigo de hoje de dois talentos simultaneamente porque há, de fato, sincronicidade entre as obras de ambos desde o volume anterior até agora, quando cada qual lançar um título próprio, Roberto o Trago comigo as dores de todos os homens, e Maria Valéria a Carta à Rainha Louca.

O livro de Menezes é narrativa em primeira pessoa feita por um homem à porta da maturidade, recém separado e envolvido com uma advogada femme fatale, um escravo da sensualidade feminina, um homem que não exerce a força bruta nem o machismo mas que nem por isso deixa de ser silenciado pela voz corrente, pois a voz corrente, o liberalismo, a tudo silencia. O macho-alfa, este dinossauro, teve seu declínio antevisto por Fernando Gabeira, ele próprio em franco declínio crepuscular, abdicando de forma impensável aos sonhos de um mundo melhor. O personagem de Roberto se autointitula macho-zeta, ou seja, a última instância da masculinidade, roto, cansado, desgastado e sofrido. Num contexto em que todos são silenciados por uma presença invisível (O Deus-Mercado de FHC?), que joga uns contra os outros, machos contra fêmeas, negros contra brancos, heteros contra gays, já não cabe mais se tentar ser consciente de um papel histórico, apenas anular o outro por questão de gênero.

Já a Carta à Rainha Louca é narrativa epistolar, também em primeira pessoa, onde uma mulher prisioneira escreve à rainha de Portugal, Dona Maria, a Louca, tentando sensibilizar a monarca em sua condição, buscar a tão em voga sororidade. A narradora discorre sobre o dilema de ser mulher numa terra essencialmente bruta e dominada por machos brutos, do quanto a mulher foi objeto histórico de exploração sexual, para procriação e lazer do dominador. De toda forma, a sabedoria desta narradora é tamanha que ela não descura da condição da rainha que, embora mulher, é titular de um poder instituído, e, portanto, opressor. Valéria usa um recurso muito interessante que é o de riscar trechos da narrativa, como se a protagonista se arrependesse e rasurasse a carta, cortando os trechos mais comprometedores. Aquilo que à Rainha não foi dado ler é presenteado ao leitor.

Vivo fosse, meu amigo Alfredo Monte, o grande crítico literário de Santos, estaria resenhando estas duas obras sublimes. Foi ele quem revelou o talento de Maria Valéria, escritora hoje consagrada. E foi o mesmo Alfredo quem vaticinou, nos últimos anos, o talento pulsante de Menezes, que amarga o fato de não ser nascido/morador do eixo Rio/Sampa, o que o jogaria pra borda do mercado literário. O próprio autor assim pensa, mas eu vejo que do Nordeste saem pontualmente luminares da nossa Literatura, e que inevitavelmente a hora dele no mainstream vai chegar. É de uma habilidade absurda no uso das vozes narrativas, seu penúltimo romance, Julho é um bom mês para morrer, é narrado por uma voz feminina, uma mulher surtada que escreve desde um apartamento trancado. Custei demais a crer que foi um homem quem se escreveu aquilo. Agora a voz é de um varão em declínio, fazendo o mea culpa pelo fato de ser homem num mundo onde o discurso de gênero criminaliza tal conduta, e é a mesma perfeição.

É necessário que os olhos do mercado, da crítica, dos leitores em especial, se voltem pra Paraíba, que tem produzido uma literatura de altíssima qualidade. Nesta dupla aparição do discurso antagônico, mas tão afinado de um homem e uma mulher, sem guerras, na comunhão necessária pra se vencer o atoleiro histórico em que o neoliberalismo nos meteu, João Pessoa nos fornece a chave pra compreensão do mundo atual.

Trago comigo as dores de todos os homens, romance, Roberto Menezes, Editora Escaleras
Carta à Rainha Louca, romance, Maria Valéria Resende, Editora Alfaguara

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