Barrela

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61 anos depois, grupo reencena peça de estreia de Plínio Marcos

Quem cai naquele antro logo recebe um apelido: Tirica, Portuga, Fumaça, Bahia, Bereco. Ninguém tem sobrenome. Alguns nem sequer apelido. Alguns são apenas tipos: Louco, Garoto, Carcereiro. Aquele antro é conhecido por vários nomes, nenhum exatamente auspicioso: xilindró, xadrez, gaiola, jaula, cana. Ali estão reunidos aquilo que os homens de bem costumam chamar, a distância, de lixo humano. As vidas naquele antro são baratas. Não valem um tostão furado. O teatro de Mário Bortolotto e do grupo Cemitério de Automóveis é barato. Montam seus espetáculos sem um tostão. Mas não vacile com eles. Esse bando é visceral e astuto. Quase todos possuem codinomes: Linguinha, Batata, Deus. Quase todos são tarimbados nas surpresas, nem sempre agradáveis, que a noite reserva aos seus visitantes.

Tudo se confunde naquele antro. Linguinha, que acabou de passar o café na cafeteira elétrica surrada, encurrala um dos espécimes do “lixo humano” num canto da jaula e dispara, ameaçador: “O Tirica nunca me enganou”. Não é mais o Linguinha quem está falando. É o Bahia. Mas pode ser Deus. E Deus confidencia, entre um intervalo e outro dos ensaios, que não gosta do que os homens de bem andam falando em seu nome. Como se disse, tudo se confunde naquele caixote de paredes pretas.

A passagem dos bastidores para a boca de cena acontece num piscar de olhos, sem técnicas brechtianas de distanciamento. O diretor corrige sistematicamente cada palavra trocada pelos atores. Segue-se o texto à risca. Os gestos, as intenções, os tons das falas vão sendo desenhados de acordo com um estilo bem próprio e definido, rente como um corte de navalha.

Quando se fazem a luz e a trilha sonora, tudo se confunde novamente: parece que não é mais teatro, é cinema. Não pense, leitor amigo, em nouvelle vague. Não pense em Jean-Luc Godard. Pense em filme de faroeste. Pense em Sergio Leone. Mas, para que tudo não se afunde num labirinto de grades, códigos velados e mistura de gêneros, é preciso que se façam alguns esclarecimentos diante das autoridades – a vida não é cinema.

Barrela é a primeira peça escrita por Plínio Marcos, em 1958, quando contava apenas 23 anos de idade. O então camelô das ruas de Santos leu por acaso em um jornal da cidade a história de um garoto de classe média preso por uma briga qualquer, num daqueles momentos tolos em que doses de embriaguez e valentia podem arruinar a vida de um novato. Passou uma noite de cão na cadeia. Quando saiu, esperou um por um dos “companheiros” de cela que o fizeram comer o pão que o diabo amassou. Matou quatro.

Não há muitos detalhes sobre os antecedentes criminais de cada um dos “elementos” enjaulados naquele antro. Sabe-se que Bereco matou um. Portuga matou a mulher – que o corneava com Deus e o mundo. Tirica conheceu os nove círculos do inferno, guiado por um tal de Morcego, quando caiu no “re-for-ma-tó-rio”, ainda pivete.

A noite é longa e todos tentam dormir naquele antro sufocante, mas o fantasma da mulher assassinada arrasta correntes nos remorsos de Portuga. O Louco está literalmente louco para enrabar alguém. Os outros, exceto Bereco, não se furtariam a alguns momentos de alívio e diversão. Portuga, defendendo o próprio rabo, revela o “passado triste” de Tirica. O conflito se instala, Bereco (o xerife da cela) instaura uma ordem provisória, sempre por um triz, Fumaça e Bahia reacendem o pavio, a tensão gruda nas paredes pretas, a barra de Tirica é aliviada quando o Garoto, detido por causa de uma briga besta, é atirado entre as feras, Bereco até tenta livrar a cara do novato, há jura de morte no ar, a noite vai ser longa, vai fazer frio.

Não há cavalos puxando uma carruagem no meio da nevasca, o cenário não é uma hospedaria com lareira, os personagens não são caçadores de recompensas, ex-generais confederados ou condenados à forca, mas, como no filme de Tarantino, ali, naquele antro imundo, ninguém pode confiar em ninguém. Nesse tipo de ambiente, as ameaças costumam ser levadas a cabo.

Embaralhando as palavras de Guimarães Rosa, xilindró “é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” Mas tudo pode se confundir novamente de uma hora para outra, bastidores e boca de cena, e os desavisados que sentarem a bunda nas cadeiras do Teatro Cemitério de Automóveis talvez se surpreendam com o ritmo de filme que o diretor e o elenco imprimem à peça.

A PEÇA TRATA DE UM JOVEM DE CLASSE MÉDIA QUE, AO FICAR PRESO EM UM ANTRO IMUNDO, JOGA FORA SUA VIDA

Percalços da vida real e mazelas do jogo teatral misturam-se num zás-trás nos ensaios desse bando. Quase todos ali são tarimbados nas intenções, métodos e referências do diretor Mário Bortolotto. Há algo incatalogável em sua maneira de fazer teatro. Surrealismo? Não. Teatro do absurdo? Não. Teatro experimental? Não. Naturalismo? Certamente. Mas um naturalismo com a precisão de quem enfia a faca entre as costelas, sem a menor dúvida, e a enterra até o fim.

Há pontos de conexão entre a dramaturgia de Bortolotto e a de Plínio Marcos – embora com referências, de um e de outro, bem diferentes. Um é conhecidamente influenciado pela poesia beat, pelas pulp fictions de Charles Bukowski, pelo cinema de Walter Hill e pelos quadrinhos de Tex. Outro teria mais ligações com os sambistas do morro, com os relatos de marinheiros do cais de Santos, com as crônicas policiais de jornal. Mas ambos possuem a vivência noturna das ruas e o olhar atento aos cenários mais escondidos da cidade, com seus personagens desajustados.

É significativo que o texto brote de uma notícia de jornal – e não de um ideal de obra de arte. Nasce do ordinário, da “vida como ela é”– e não da “vida como ela poderia ser”. Não deve passar despercebido que o termo “barrela” signifique “espécie de caldo obtido da cinza proveniente da queima de espécies vegetais”, mas também algo ou sujeito “sem qualidade, insignificante, pueril, sem valor algum” e, por fim, “curra”, na gíria dos presidiários. O olhar dos dois dramaturgos, diretores e atores, com suas diferenças de tonalidades, detém-se nos ambientes sujos, precários, muitas vezes sórdidos, e ambos teletransportam toda essa sujeira para suas obras, não apenas como tema, mas também como atitude, como linguagem.

Do foco das ruas para o fogo das celas de uma cadeia, o giro é, no entanto, ainda mais brutal. O que restaria do sagrado (para lembrar um texto de Bortolotto) entre aqueles seres humanos enjaulados? Como as senhoras de bem, confortavelmente sentadas em poltronas estofadas, poderiam levantar a barra de suas saias e atravessar os infernos – parafraseando William Carlos Willians ao poema Uivo, épico das sarjetas de Allen Ginsberg? Que aproximações seriam pertinentes entre o texto de Plínio Marcos (de 61 anos atrás, vale lembrar), a montagem de Bortolotto e a violência de um rap como Diário de Um Detento, parceria de Mano Brown com Jocenir Prado, gravado pelos Racionais? O que pode o teatro, o cinema, a poesia, a pintura ou o romance para decifrar os códigos gritados por esses seres ejetados da sociedade, como abortos descartados em privadas imundas? As perguntas são muitas, os horrores não cessam, tudo se confunde mais uma vez, mas uma coisa é certa: todos ali, naquele cemitério de automóveis, sabem o que estão fazendo: teatro, ainda que pareça filme. Todos sabem que a vida não é cinema. Todos sabem que a noite vai ser longa. Haverá mortos e feridos, profundamente feridos. Mesmo com o clima sufocante, vai fazer frio. Vai fazer frio.

Carta Capital

 

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