Mulheres pretas no poder

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Sementes: Mulheres Pretas no Poder

Por Filippo Pitanga

“A ALERJ, hoje, onde está o Plenário, é uma casa do tempo do Império, na construção da República. Adentrar esse lugar, não como aconteceu com nossos ancestrais, para serem presos, julgados e exterminados, mas como uma pessoa que vai impedir que isso continue acontecendo, que quer impedir isso, então, é muito simbólico. De todas as formas. A sala da Comissão de Direitos Humanos a gente chama de calabouço, porque realmente é fundo, pois ali é um dos lugares que era utilizado como prisão, então a gente sabe o tamanho da nossa responsabilidade”.

Estas são algumas das falas da atual deputada estadual eleita Renata Souza, que atua na política desde 2006, quando ajudou a compor a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ junto com Marielle Franco, num dos relatos emocionados em cena do novo documentário “Sementes: Mulheres Pretas no Poder” de Éthel Oliveira e Júlia Mariano (2020). O filme está sendo distribuído gratuitamente pela Embaúba Filmes a partir do dia 07 de setembro em seu site e recebeu exibição prévia de imprensa para a Carta Capital.

É bastante comum ouvir as pessoas perguntarem se um filme poderia verdadeiramente gerar uma real mudança na sociedade. Ainda mais em tempos descrentes ante o desmantelamento de políticas públicas voltadas para a cultura no Brasil… Afinal, nem toda a população é obrigada a ser cinéfila ao invés de apenas querer um entretenimento fugaz depois da dura realidade do noticiário das oito desde o Impeachment, o assassinato de Marielle Franco ou até a pandemia atual.

Porém, será que mesmo no entretenimento mais escapista não há alguma reflexão? Ou será que o noticiário não transborda inevitavelmente na nossa reflexão sobre os filmes, ou nos filmes em si, transformando com um pouco de reflexão a todos em cinéfilos de alguma forma?

“Cinefilia”? O que é isso, afinal? Será que são pessoas, por exemplo, para quem foi uma realização coletiva muito esperada o fato de cineastas como Fernando Meirelles (“Dois Papas”) e Petra Costa (“Democracia em Vertigem”) terem concorrido ao Oscar este ano? Dois filmes bastante políticos e críticos ao crescente conservadorismo atual, sejam de ficção ou documentário, respectivamente.

Ou a cinefilia contemporânea seria acompanhar e valorizar realizações como cineastas pretas do porte de Grace Passô com “Vaga Carne” (dirigido junto com Ricardo Alves Jr.) ter sido selecionada no Festival de Berlim e Everlane Moraes ter exibido seu “Pattaki” tanto em Rotterdam 2019 quanto em Sundance 2020? Dois filmes que reivindicam a ancestralidade e a força dos orixás para refabular o presente ante as mazelas impostas pela atualidade.

E se o papel do cinema for justamente este? O papel de gerar uma catarse sobre uma realidade que, sem a arte, talvez fosse incompreensível ou fôssemos incapazes de uma apreensão total. Pois um dos fatos mais incompreensíveis até hoje em nossa sociedade é o covarde assassinato de nossa vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes há dois anos atrás.

E, mesmo que ainda ecoe a pergunta “Quem mandou matar Marielle?”, sua carreira e a diferença que fez na vida das pessoas não se resume a este ato atroz, mas se estende a um legado de mulheres negras que hoje também estão na política, como é retratado no novo filme “Sementes: Mulheres Pretas no Poder”.

As diretoras Éthel Oliveira (“Terceira Diáspora” e “Vinte de Novembro”) e Júlia Mariano (produtora e roteirista de “A Batalha do Passinho” e “Deixa Na Régua”) acompanharam algumas das mulheres que deram continuidade às causas da vereadora Marielle Franco ao se candidatarem às eleições 2018, como Jaqueline Gomes, Mônica Francisco, Renata Souza, Rose Cipriano, Tainá de Paula e Talíria Petrone.

Para além da forte representatividade na frente das câmeras, atrás destas também foi realizado o filme com equipe predominantemente composta por mulheres e com paridade entre pessoas brancas e negras – sendo que todas estas exercendo as principais funções criativas, como direção, fotografia (Marina Alves), roteiro (das diretoras com Helena Dias e Lumena Aleluia) e a belíssima trilha sonora inspirada no coro e percussão de raízes africanas (Maíra Freitas).

Desde as primeiras cenas, o extracampo se conjuga com as imagens para permear o documentário com um tom de ensaio lírico, cuja fabulação permite curar a realidade tão ferida pelos acontecimentos verídicos. Desde o som de água que perpassa a narrativa, como um fluxo espiritual que tudo conecta, à montagem que eterniza plasticamente em preto e branco nos frames iniciais o impacto da perda que o Brasil passou. Um luto que se transformou em luta e resistência coletiva, semeando a força que ninguém poderia refrear ou impedir.

FOTO: KATJA SCHILIRÒ

Há três atos bem definidos no filme, começando com a introdução das personagens; depois a campanha individual de cada uma, mas que também se interliga em parcerias, torcendo uma pela outra; e o desfecho com o resultado das urnas e a posse daquelas que foram eleitas. Mas o diferencial, decerto, é o amplo alcance com o qual a equipe do filme conseguiu se desdobrar entre as várias candidatas, bem como a qualidade técnica sempre equalizada na estética de cada acompanhamento, não obstante em lugares públicos ou manifestações bastante lotadas.

Devido ao acesso concedido no documentário, vemos algumas das campanhas serem destrinchadas, como o vídeo de horário eleitoral de Mônica Francisco, cujo uso de drone e as referências a Martin Luther King são realçadas na decupagem pela equipe de filmagem.

Outra questão importante é a proximidade e identificação em momentos cruciais, desde em abordagens policiais indevidas às candidatas, numa cena tensa com Talíria Petrone; bem como a ancestralidade nas cenas relativas ao cuidado com o cabelo da mulher negra…

Algo que é atravessado até mesmo pela política, pois é a presença de inúmeras gerações ascendentes que convivem juntas no presente com as personagens que agrega algo místico ao processo (como o depoimento da mãe de Renata Souza na cozinha, fazendo o jantar de toda a equipe, ao rezar pela segurança da filha na política).

Por outro lado, há cenas cuja proximidade talvez não dê conta das várias camadas prévias, como no discurso da passeata do Dia do Orgulho LGBT em Niterói… A montagem realça a força da não binariedade dos eleitores, porém, ao mesmo tempo, oculta de certa forma a falta de engajamento popular no meio da festa para candidatas como Jaqueline Gomes, cuja fala talvez fosse uma das mais importantes de ser ouvida pelos foliões ocupados demais em dançar. Vale mencionar outras participações especiais igualmente dignas de menção, como Bárbara Aires, Galba Gogóia e Indianare Siqueira, que já estrelou outro filme de Éthel, “Arremate”.

Justo em mais um ano eleitoral, é mais imprescindível que nunca debatermos a transparência de nossos candidatos e candidatas, de origens e identidades o mais diversas possíveis para não repetirmos os mesmos erros. O cinema pode registrar a revolução da vida real através dos atos destas mulheres tão fortes, mas também é um ato de resistência em se filmar o registro dessas revoluções mesmo contra todas as adversidades e perseguições ao cinema brasileiro.

O próprio ato de fazer um filme é uma contestação ao sistema. E o de assistir à obra é uma provocação a mudar o presente tenebroso que estamos vivendo quando estivermos diante das urnas uma vez mais este ano. Cinema pode e deve ser revolucionário… mas o espectador também deve fazer sua parte na revolução.

Carta Capital

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