Marieta Severo: «Brasil vive un retroceso que nunca imaginé»
Em 1965, o mundo foi sacudido pelo assassinato do ativista negro americano Malcolm X e pelo envio de tropas dos EUA ao Vietnã. No Brasil, o regime militar recém-instalado começava a dar suas cartas sombrias. Para Marieta Severo, 1965 foi feito de revoluções internas com sua estreia no teatro (em “Feiticeiras de Salém”) e no cinema (em “Society em baby doll”). Foi o primeiro ano do resto de sua vida.
Marieta esteve por trás de alguns dos momentos mais importantes da cultura brasileira: em 1968, atuou em “Roda viva”, peça-símbolo de resistência à ditadura; em 1995, estrelou “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”, marco da retomada do cinema nacional. Em cena, foi de tudo um pouco. E, ultimamente, tem sido muito mãe. Da sofrida matriarca de “Incêndios”, peça em cartaz há dois anos pelo país (acabou de encerrar uma segunda temporada no Rio e promete outra em 2016), à simpática Dona Nenê, da série “A grande família”, a quem deu adeus em 2014, após 14 anos de dedicação.
Passadas cinco décadas daquele fervilhante 1965 em que começou, Marieta olha ao redor com apreensão.
— Sou contra a redução da maioridade penal e contra muita coisa que está em evidência e que, para a minha geração, é chocante. Há um retrocesso que nunca imaginei. Eu sou da década de 1960, do feminismo, da liberdade sexual, das igualdades todas — diz.
Aos 68 anos, ela volta às novelas em junho, no papel da amoral Fanny, dona de uma agência de modelos, em “Verdades secretas”, que a Globo exibirá na faixa das 23h. Na sequência, filma o longa “Aos nossos filhos”, dirigido por Maria de Medeiros. Na semana passada, a atriz recebeu O GLOBO para a seguinte entrevista, em que também fala de personagens, lamenta o excesso de musicais na cena teatral e defende o Teatro Poeira, que mantém com a atriz Andréa Beltrão, como seu legado.
Você passou 14 anos com um personagem. Dona Nenê foi embora, agora que vem outro?
Nenhum personagem te habita de forma tão absoluta quanto um que você faz por tanto tempo. É quase a sensação de uma outra natureza. É muito louco. E aí é antinatural se despedir dele. Foi muito difícil. Se eu falo, até hoje me dá angústia. É uma perda. Vivi por 14 anos com essa família mais do que com a minha própria. Acho que não é para fazer tanto tempo um personagem. Mas ela foi embora. Estou gravando no mesmo estúdio de “A grande família”. Tive de respirar três vezes e entrar. Estou no mesmo camarim. Mas agora é Fanny.
E como é Fanny?
Uma das coisas mais atraentes da Fanny é ser diferente da Nenê. Brincadeira, mas isso é um plus sim. Eu não pretendia voltar às novelas ainda, mas achei ótimo. Ela é dona de uma agência de modelos, que complementa o orçamento vendendo as meninas. Vende esse submundo para as garotas com muita convicção e amoralidade.
Ao estilo “lavou, tá novo”?
É o que ela diz. É a maneira de Fanny estar no mundo. Ela é amoral, quer dinheiro, poder, não tem limite. Quando você toca nessas questões, quer criticar, dizer: aí gente, tem isso. Porque hoje se está com a mania de cobrir todos os sóis com as peneiras. Temos um conservadorismo no ar.
Conservadorismo político, de costumes?
Acho que mistura tudo, e isso é o pior. Quando você tem um Congresso votando uma lei de maioridade penal, é o quê? É um conservadorismo político apoiando um conservadorismo social, de ideias, de princípios, de valores.
Você é contra a redução da maioridade penal?
Sou completamente contra. Sou contra muita coisa que está em evidência e que, para a minha geração, é chocante. Há um retrocesso que nunca imaginei. Sou da década de 1960, do feminismo, da liberdade sexual, das igualdades todas. Quando você tem essas conquistas, a tendência é achar que elas estão conquistadas dali para a frente. Quando volta esse moralismo, e esse mundo religioso começa a ditar as regras, é muito assustador.
Acha que as conquistas da mulher também retrocederam?
Há espaços da mulher que foram conquistados e são sólidos. Mas há outros em que a gente não consegue ir adiante, como o aborto, que é um direito. E por quê? Por causa desse conservadorismo religioso com representação política. Não tenho nada contra religião. Sou a favor de todas, mas não exerço nenhuma. Só não quero uma religião legislando a minha vida.
Você vai fazer um filme também?
“Aos nossos filhos”, (baseado na peça) da Laura Castro. Faço uma mãe exilada com um passado de combate político, que tem uma filha casada com uma mulher. E essa mulher resolve ter um filho. Quem dirige é a Maria de Medeiros, que fez a peça. Filmo em novembro e aí volto com “Incêndios”, cujo grande valor é quebrar a norma de que o público só quer comédia ou musical. Não é verdade.
É uma ditadura do mercado?
É. Mas assim se aprisiona o mercado. Adoro musical. Meu filme favorito é “Amor, sublime amor”, mas não quero um mercado dominado por musicais. É o que está acontecendo. Hoje, 90% dos patrocínios da Rouanet destinados ao teatro vão para musicais. Isso não é correto. Não é saudável. Não sou contra o entretenimento. Mesmo. Mas tem que haver uma forma de incentivar outras áreas, de pesquisa, criação. Se não, vamos ficar nos caminhos já percorridos. Esses musicais usam uma fórmula estabelecida na década de 1950. “Incêndios” tem para mim esse valor enorme. E merece que a gente continue batalhando. Agora não temos mais patrocínio, temos que correr atrás. Somos oito atores, é difícil manter a peça com bilheteria.
Por quê?
Por causa da equação do preço do ingresso. Os serviços de todos os envolvidos na produção ficaram mais caros com o passar do tempo. E a propaganda custa uma fortuna. São várias questões.
Hoje se discute mudanças na Lei Rouanet, como você vê isso?
Os tempos mudam. As coisas têm que ser adaptadas. A Rouanet atendeu muito. Agora é bom conversar, aperfeiçoar. É o que se está fazendo.
E essa confusão envolvendo a tela “Janelas e torres”, de Alfredo Volpi, que você possui? (Uma obra igual apareceu no ano passado na ArtRio, deixando o mercado atônito. O mistério sobre se uma tela é cópia da outra ou se o pintor fez duas iguais não foi elucidado).
Não sei. Não há muito a dizer. Esse quadro foi comprado no fim dos anos 1960. Ele esteve em duas exposições: na Bienal de Veneza, em 1964, antes de eu e Chico (Buarque) comprarmos, e no MAM do Rio, em 1972. O quadro passou por uma avaliação e foi atestado como autêntico.
O que você ainda quer na carreira?
Peças ótimas e trabalhos ótimos na TV e no cinema. Mas meu ponto de realização máximo é o Teatro Poeira e o Poeirinha, que fazem 10 anos. Eu quero que o Poeira continue com a importância que passou a ter. É o meu legado.