Brasil: revelan una historia de persecusión a artistas en Pernambuco
Pesquisa resgata histórias de artistas investigados e fichados em Pernambuco entre 1934 e 58
RIO — Recife, 1944. A atriz e cantora Anita Palmero está de passagem pela cidade, em turnê. Moradora do Rio, a espanhola naturalizada argentina, de 42 anos, é conhecida das rádios portenhas. Uma noite, conversa animada com militares americanos no Grande Hotel, sem saber que comete uma violação. Suas gargalhadas são escandalosas para autoridades que a observam de uma mesa próxima. Advertida, ri ainda mais e acaba levada pelo secretário de Segurança Pública, Etelvino Lins. A partir daí, passa a ser investigada pela Delegacia de Ordem Pública e Social, que depois daria origem ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops). Agora, 71 anos depois, a história vem à tona, como parte do “Obscuro fichário dos artistas mundanos”.
O projeto foi criado em 2012 pela carioca Clarice Hoffmann, com patrocínio do Itaú Cultural e do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura. E consiste na divulgação, por enquanto em um blog e no Facebook, de arquivos encontrados pela jornalista e produtora cultural no Dops de Pernambuco. Em 2004 Clarice fazia uma pesquisa sobre mulheres negras no local quando comentou com uma historiadora que sua avó, conhecida como Gusta Gamer, era atriz e tinha sido fichada pela polícia. Acabou encontrando assim uma série de documentos sobre pessoas que tinham ligação com a área artística. São 404 fichas das letras M a Z produzidas pelo Dops entre 1934 e 1958 para monitorar artistas em trânsito por Pernambuco. Cerca de 60% são mulheres; e 40%, estrangeiros. Os arquivos das letras A a L não foram encontrados — acredita-se que tenham sido perdidos em algum acidente envolvendo água, já que parte do material descoberto estava molhada. Um cruzamento de dados, no entanto, permitiu aos pesquisadores estimar que, no total, seriam mais de 1.100 fichas.
— Sem querer, acabaram criando documentos importantes sobre um circuito underground, da boemia. A ideia de mundano vem daí, do fato de esses artistas serem da noite, estarem ligados aos prazeres do mundo, sempre de passagem — comenta Clarice ao explicar o nome do projeto, atualmente em fase final de pesquisa, na qual a equipe procura mais informações sobre os personagens em bibliotecas, jornais e revistas.
A ficha de Sixto Argentino Gallo é um dos exemplos que se enquadram bem na classificação. “Menor homem do mundo”, ele era uma das 200 atrações do Circo Hispano-americano, que chegava ao Recife em 1950. No jornal “Diário da Manhã” daquele ano, o espetáculo era anunciado como “o mais moderno já visto na capital”.
A lista do Dops incluía artistas famosos, como Dalva de Oliveira e Grande Otelo, grupos de teatro e integrantes da indústria do entretenimento que então se formava. Mas são os “mundanos” que mais chamam a atenção. Personalidades como Norberto Americo Aymonino, transformista argentino, que costumava se apresentar no Rio, com passagens pelo Recife. Foi fichado numa delas, em 1942. Desde 1941, Aymonino conquistava o público local em suas participações na Festa da Mocidade. Reportagem daquele ano, no “Diário da Manhã”, afirmava que Aymond, como também era conhecido, se apresentava “em toilette feminina”, com “voz, corpo, pele, braços e pernas de mulher”. O texto terminava com a pergunta: “No caso de mobilização, qual seria a situação de Aymond, o transformista?”
Enquanto a sexualidade do artista era questionada, Maria Montezinos, considerada “a mais absoluta das bailarinas espanholas”, surgia como “cosmopolita e provocante”. Fichada pelo Dops em 1939, ela fora notícia no “Correio Paulistano”, um ano antes, bradando contra Romeu: “O que mais me desagrada (…) é a falta de iniciativa. Se tivesse sugerido a Julieta que fugissem juntos, ela, apaixonada como estava, tê-lo-ia acompanhado de olhos fechados. Mas Romeu, estúpido, preferiu a isso ficar ridiculamente pendurado na escada de corda, atirar-se ao chão na cela de frei Lorenzo e ingerir, num cemitério, como uma costureirinha qualquer, uma pastilha de sublimado. Horrível!”.
Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e consultor do projeto, a forma como Maria e outros artistas são descritos nas fichas do Dops casa com o contexto de fiscalização da época:
— A categoria artista já é suspeita por si só. São pessoas que mudam de nome, e muitas mulheres foram investigadas porque, numa cultura machista, desconfia-se de quem trabalha à noite. Além disso, os corpos que não correspondiam ao padrão eram criticados. O período Vargas é marcado pelo pensamento eugenista, quando alguém podia ser criminoso só por conta de sua constituição corpórea. Anões e mulheres barbadas, por exemplo, eram acompanhados de perto.
O professor esclarece ainda que nômades historicamente foram alvo de suspeita para o Estado, assim como os comunistas no período estudado pelo “Obscuro fichário”. Os Cossacos de Kuban, portanto, representavam ameaça dupla. Formado por artistas russos, expatriados depois da revolução de 1917, o grupo se apresentou pelo Brasil com espetáculos que envolviam equitação.
— Depois, cada um foi procurar emprego para conseguir se manter aqui — conta o artista pernambucano Paulo Bruscky, de 66 anos, filho do “cossaco” Eufemius Bruscky e que só descobriu a ficha do pai a partir do contato de Clarice. — Eu já andava atrás do fio da meada dos Cossacos, mas foi graças a ela que cheguei às informações do Dops. Foi uma das emoções mais fortes que já tive, porque era uma lacuna. É mais um episódio obscuro passado a limpo — diz Bruscky, que pretende lançar um livro sobre o grupo, que teve integrantes fichados e outros investigados, como seu padrinho, Timóteo Scrypnik.
‘O QUE VIVEMOS E O PERIGO QUE ISSO SIGNIFICA’
A investigação ia além do fichamento, com uma pasta reunindo vários documentos sobre a pessoa. Aconteceu com Nilo Scansetti, entre outros. Considerado um “artista enciclopédico” por saber dançar, cantar e tocar, Nilo foi gerente das casas noturnas Casino Atlântico, Taco de Ouro e Imperial Casino. Já havia sido acompanhado por suas atividades, e ainda foi acusado de embarcar num navio sem passagem. Sua pasta continha 19 documentos, entre telegramas, fotos, cartão de visita, bilhetes e até notas de compras de tecido.
Muitos artistas eram seguidos pela polícia, como ocorreu com Boris Popoff. Um dos sócios do Bar Restaurante Familiar Tabu, que recebia sempre os Cossacos de Kuban, o russo era também representante de um laboratório de remédios. Pelas viagens rotineiras e por ser considerado “inteligente, ardiloso, falastraz e com respostas sempre prontas e hábeis”, levantou suspeitas de que seria agente internacional. E até o cardápio de seu bar foi anexado à investigação: os nomes estrangeiros dos pratos poderiam ser um código.
No cerco do Dops chama a atenção também a história da bailarina e contorcionista Rita Gouillaux, investigada por apresentar diferentes dados, dizendo-se francesa e italiana; solteira e casada; doméstica e artista. Rita aparece também com outros nomes, como Jacque Line Rolland.
— Foi uma tática muito adotada — diz Clarice, lembrando que será lançada uma convocatória para que artistas possam desenvolver trabalhos inspirados nas histórias. — Numa ditadura, os primeiros forçados a se calar são os artistas. Num momento em que alguns falam na volta desse regime, trazer à tona essas histórias dá a dimensão do que vivemos e do perigo que isso significa.