Escribir desde la subalternidad

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Conceição Evaristo nasceu em uma família de mulheres negras cozinheiras, faxineiras, empregadas domésticas. Segunda de nove irmãos, a escritora, que completa 70 anos em novembro, diz que na infância não viveu a pobreza, mas a própria miséria na favela do Pendura Saia, encravada no alto da Avenida Afonso Pena, área nobre de Belo Horizonte. Ali, da mãe e das tias, ouviu muitas histórias e inventou outras. A ficção era indispensável à sobrevivência, uma forma de sublimar a realidade. Essa experiência é o alimento da sua escrita ou, como ela afirma, da sua “escrevivência”.

Mulher, negra, de origem pobre. É desse lugar que Conceição fala, que Conceição escreveu e escreve seus livros. Da sua estreia em 2003 com “Ponciá vicêncio” (Ed. Maza), lançado nos Estados Unidos, na França e em breve no México, a “Olhos d’água” (Pallas), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Contos em 2015. Até chegar a “Histórias de leves enganos e parecenças”, reunião de contos recém-lançada que marca também a estreia da Editora Malê. Em todos os seus trabalhos estão presentes a crítica social e a religiosidade, que ela prefere chamar de ancestralidade. O mistério e o encantamento são os fios que ligam os contos de “Histórias de leves enganos…”.

— Eu sempre tenho dito que a minha condição de mulher negra marca a minha escrita, de forma consciente inclusive. Faço opção por esses temas, por escrever dessa forma. Isso me marca como cidadã e me marca como escritora também — diz Conceição. — Nos textos do livro novo eu trago toda uma memória ancestral, que já estava presente em “Ponciá vicêncio”.

A escritora recebeu O GLOBO em sua casa em Barra de Maricá na manhã da quarta-feira passada, a 65 quilômetros do Rio, um braço de terra incrustado na Lagoa de Maricá. As paredes são amarelas, a mesma cor favorita de Dóris da Conceição Aparecida, protagonista de um dos contos do livro novo. Na sala de estar, um cofre português feito de ferro e madeira maciça serve de apoio a objetos trazidos de suas viagens a Angola, São Tomé e Príncipe, África do Sul, Senegal. Síntese da língua e das culturas que compõem a sua literatura.

Uma escada estreita, do lado de fora, leva ao segundo andar, onde há uma enorme varanda com vista para a lagoa e a biblioteca de Conceição. É lá que ela escreve e, se fica tarde, também dorme na cama de solteiro que faz as vezes de sofá. Um quarto que nada lembra a casa de sua infância:

— Não nasci rodeada de livros, mas rodeada de palavras. Havia toda uma herança das culturas africanas de contação de histórias. Minha mãe fazia bonecas de pano ou de capim para mim e minhas irmãs e ia inventando tramas. Ela recolhia livros e revistas e mostrava para nós, mesmo sem saber ler. Víamos as figuras e inventávamos novas histórias. Meu interesse pela literatura nasce daí.

O contato com a palavra escrita só veio no colégio. No primário, Conceição já se destacava nos clubes de leitura, lia sem gaguejar. Ao passar para o ginásio, começou uma série de interrupções. Entrava e saía da escola. Trabalhou como babá, faxineira, vendedora de revistas. Ela seguia o caminho das mulheres da sua família que tinham vindo antes dela, mas sabia que o que queria: ser professora. Terminou o ginásio, ingressou no curso normal. No início da década de 1970, formada, não conseguiu emprego em Belo Horizonte.

— Não havia concurso em Minas. Só entrava para dar aulas quem tinha o “quem indica”. Minha mãe e minhas tias tinham relações com famílias ricas de Belo Horizonte. Minha família trabalhou para parentes de grandes escritores, como Otto Lara Resende e Henriqueta Lisboa. Mas eram sempre relações de subalternidade. Nunca iam me indicar — afirma Conceição. — No Rio de Janeiro tinha concurso, e então eu vim em 1973.

A escritora fez carreira como professora do primeiro segmento do ensino fundamental na rede municipal, mas não parou de estudar. Cursou Letras na UFRJ no final da década de 1970, depois fez especialização em Literatura na Uerj, logo após ficar viúva, na década de 1980. Nos anos 1990, formou-se mestre em Literatura na PUC-Rio. E, há três anos, terminou o doutorado em Literatura Comparada na UFF, após enfrentar uma isquemia. Em todos esses espaços, era uma das poucas negras, e sempre era mais velha do que os colegas. Essa sensação de deslocamento atravessa sua escrita desde a infância. Conceição escreve para entender o mundo e para encontrar o seu lugar nele:

— Fui uma menina e uma jovem muito curiosa. Eu via as pessoas conquistando coisas e sempre achei que tinha o direito de conquistar também. A escrita foi sendo o lugar de desaguar os meus desejos. E também a tristeza, o sentimento de injustiça que percebia, mas não sabia definir bem. Desde criança me dava angústia ver minha família trabalhando muito e não ter nada.

REFERÊNCIA PARA JOVENS AUTORES NEGROS

A superação da pobreza permitiu que lançasse um olhar crítico sobre o seu passado e a sua experiência.

— A pobreza pode ser um lugar de aprendizagem, mas apenas quando você a vence. Se não, é o lugar da revolta, da impotência, da incompreensão. E aí você não faz nada. Hoje eu vejo que a pobreza foi o lugar fundamental da minha aprendizagem diante da vida — afirma. — Minha literatura não é pior nem melhor do que qualquer outra, só nasce de uma experiência diferente da qual eu me orgulho e que não quero camuflar.

Se hoje Conceição é uma referência para jovens autores negros, ela mesma só descobriu essa literatura ao tomar contato com o movimento negro na universidade. A escritora lembra o impacto que lhe causou a leitura de “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. A realidade descrita no livro era também a dela própria e de sua família. Depois vieram as leituras de Maria Firmina dos Reis, Lino Guedes, Oswaldo de Camargo. Num momento de explosão das lutas anticoloniais na África, caíram em suas mãos as obras de Frantz Fanon, José Craveirinha e Agostinho Neto.

Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a escritora confrontou o curador, Paulo Werneck, sobre a falta de negros na programação principal. Conceição conta que não sabia quem ele era nem que estava presente ao debate, e que apenas respondeu uma pergunta sobre o assunto. Ela mantém a crítica e aponta um desinteresse pelos autores negros.

— Se você vai no titio Google, que me parece mais democrático do que a Flip, e lança lá escritoras negras brasileiras, vai aparecer um monte de nomes. Hoje só não acha quem não quer. Mas nós somos teimosos, vamos estar lá — diz Conceição. — Isso tudo faz parte do nosso próprio aprendizado como brasileira. A questão negra não é uma questão para o negro resolver, a questão indígena não é para o índio resolver. São questões para todos os brasileiros pensarem.

A ausência dos negros vai além dos eventos literários e se estende às editoras. “Olhos d’água”, lançado em 2014, foi o primeiro livro de Conceição cuja tiragem ela não precisou bancar ao menos em parte. E, mesmo assim, porque foi publicado com o apoio de um edital governamental. “Histórias de leves enganos e parecenças” também foi editado sem custos. Contudo, “Ponciá vicêncio”, sua obra mais famosa, está hoje fora das livrarias. A editora fechou e pagou os direitos de Conceição em exemplares, hoje guardados na casa de Maricá. Antes de ir embora, ela presenteia o repórter com um livro autografado e pede ajuda para vender os outros. É só falar com ela, diz. E se despede com um abraço.

Publicado en O Globo

 

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