Quando a baiana Lívia Mattos começou a tocar sanfona, aos 17 anos, o público a olhava de modo cauteloso, desconfiado, a assuntar se a bela morena de melenas negras manobrava de fato o acordeom de 120 baixos e 10 quilos ou se ali estava a rainha da mímica, a fingir com perfeito cinismo ser dela o talento de outro.
Lá pela quarta música, relaxada e vencida pelas evidências, a plateia começava a aproveitar o show. “Havia uma atmosfera de descrédito advinda do machismo recorrente manifestado por homens e mulheres”, afirma Lívia, que teve o picadeiro como primeiro palco.
Foi no Circo Picolino, em Salvador, “lugar agregador de todas as possibilidades”, que aos 16 anos entendeu seu papel na vida. E como se o equilíbrio sobre o monociclo e outros desafios circenses não lhe bastassem, associou a música às peripécias. “Sempre trabalhávamos com música ao vivo, uma relação de diálogo, com repertórios incríveis, dinâmica afinada entre movimentos e sons.”
E aí entra a sanfona da tia Beth, presente de 40 anos atrás da avó de Lívia à filha. “Eu queria um instrumento para usar em cena e o acordeom caía perfeitamente, pois tem a ver com o ambiente circense, tem potência sonora e beleza cênica, além de tocar o coração de qualquer um. E a música no circo é bem isso, ajuda a dilatar as emoções, da tensão ao suspiro de alívio, do lírico à comicidade da palhaçaria e das emboladas, dá a tônica e faz a marcação dos movimentos. Pedi a sanfona para minha tia e até hoje ela diz que foi o presente mais bem dado de sua vida.”
De princípio o plano era usar a sanfona cenicamente. “Eu não tinha a intenção clara de ser musicista. Só que a música bole em um lugar outro, por outra via de expressão e comunicação interessante de experimentar. Peguei amor. Ter um instrumento como a sanfona, que você abraça no peito, respira pelo fole e reverbera um timbre que te acessa e acessa imediatamente o outro é uma experiência única.”
Se contraindicação há, faz mofa, é o peso ingrato, que já levou muito marmanjo a desistir. Em seu caso, a estrutura muscular desenvolvida no circo foi fundamental. “Gosto de brincar com a gravidade. Toco pendurada em trapézios, tirolesas, guindastes, sobre o monociclo e sobre o chão também”, diverte-se.
Foi no curso de Sociologia na Universidade Federal da Bahia que Lívia se aprofundou na interseção música e circo e iniciou uma pesquisa que resultou em documentário. “Quero dar continuidade ao projeto pelo Brasil. E tenho urgência, pois o foco são narrativas de artistas circenses veteranos, alguns de 90, 100 anos de idade.”
A sanfoneira que aprendeu a tocar no circo, na raça, e com as muitas dicas recebidas aqui e acolá se especializou na Emesp e com o mestre Toninho Ferragutti. Criativa, compõe sem classificar previamente. “Às vezes pergunto a um parceiro musical, ‘o que você acha que é isso?’, e então construímos o arranjo. A sanfona permite muitas possibilidades para além dos estereótipos, que também são maravilhosos.”
Chico César, que Lívia acompanha na turnê do disco Estado de Poesia, é uma referência. Oswaldinho do Acordeom e Ferragutti também. Na Estônia, Áustria ou Nova York sua música acontece, e isso a alimenta.
Quando sente o fervor do aplauso feminino, em especial no Brasil, reconhece o transcorrer de um processo de valorização da mulher, constantemente atropelado pelo preconceito, por ela classificado como “pura burrice herdada”.
A cantora e instrumentista Dayse do Banjo, carioca de Padre Miguel, mais de 20 anos de carreira, também já enfrentou muito olhar encharcado de desconfiança. “O meio do samba é muito machista, no começo é muito difícil. Adquirir respeito e credibilidade foi uma conquista. Nas rodas de samba as mulheres pedem pelo amor de Deus para participar.”
Quando Dayse pulou do violão para o cavaquinho e depois acrescentou o banjo, naqueles anos 1980 em que Almir Guineto inovou ao levar o instrumento de caráter mais percussivo para as rodas de samba, teve de submeter o talento ao escrutínio público.
“Os homens diziam, ‘será que toca mesmo?’ E quando me ouviam respeitavam. Construí minha carreira em cima de minhas convicções, nunca entrei numa roda com o objetivo de me tornar conhecida, e sim por estar encantada com aquele som. Não importava a cara feia, não queria ser famosa, e sim aprender, me arrepiar de emoção.”
Na infância de garota filha de um violonista e crooner do Cassino da Urca e de uma mãe musical, cujo talento para o canto foi podado pelo marido, talvez por receio de concorrência, o batuque da Mocidade chegava até seu quarto.
Na sala, a vitrola do pai, Peristafilino (o avô médico registrou o filho com o nome de um músculo do palato), honrava o jazz e grandes intérpretes. Do chocalho e do pandeiro da Jovem Guarda pedidos de presente ao pai em lugar de bonecas, Dayse evoluiu para o violão e os encontros adolescentes com amigos foram regados a Vinicius de Moraes, Toquinho, Beth Carvalho.
Revistas de música compradas no jornaleiro e estudos de teoria musical com um maestro lhe deram o passaporte para o cavaquinho. Ao violão do início coube a ilustre missão de ser o parceiro fiel nas composições. O cavaquinho, de som mais melódico, acabou por ter seu espaço ocupado pelo banjo, mais percussivo.
A troca de um amor por outro mereceu a crônica musical Lamento de um Cavaquinho. O padrinho Almir Guineto, parceiro de composição, confiou a Dayse a direção de sua banda, Clínica Geral. Beth Carvalho, que a considera “joia rara do samba”, gravou Arrasta a Sandália, composição sua lançada em disco de 2012.
Uma das provas de fogo ocorreu no Carnaval de 1989, quando, a convite da Mangueira, se tornou a primeira mulher a tocar cavaquinho na avenida. A emoção porejava quando chegou Jamelão. “Veio com aquela marra de sempre, mas quando olhou para mim deu um sorriso. Foi a única vez em que minhas lágrimas pularam dos olhos como num desenho animado.” Quem a vê no palco sente a energia. No Traço de União, reduto paulistano de bambas, ela tem plateia fervorosa, encantada pela intérprete de presença forte e trato doce.
A se juntar ao time de mulheres cujos habilidade e talento têm de passar pela aprovação de plateias habituadas a padrões ultrapassados está também Sintia Piccin. “Quando chego para tocar acompanhada de meu marido, também saxofonista, pensam que estou carregando o instrumento para ele.” No palco, a primeira reação do ouvinte costuma ser um franzir de sobrancelhas. A segunda é um aplauso entusiasmado. “Lido bem com isso porque gosto de surpreender.”
Caçula de seis irmãos instrumentistas, Sintia foi incentivada pela irmã estudante de violão a se iniciar na flauta. Tinha 6 anos e ouvido afiado. Quando decidiram formar uma banda, sentiu a urgência de mudar de instrumento. Eis que aparece um saxofone velho, ruim e sem manutenção trazido por um cunhado. “Ninguém sabia tocar. Era difícil de soprar, eu precisava me matar para extrair uma nota. Comecei a aprender sozinha, ajudada por um livro.”
Aos 13, quando as primeiras aulas num curso livre lhe deram técnica suficiente, o sax enferrujado ocupou o altar de suas paixões. “Nem pensava nessa questão de ser instrumento masculino. Já estava encantada demais quando percebi que quase não havia mulheres no sax. No Conservatório de Tatuí, além de mim só havia mais uma estudante e ainda hoje conto nos dedos as mulheres dedicadas a esse instrumento.”
Antes de se entregar à magia ancestral da banda Höröyá, a saxofonista pesquisou a linguagem dos tocadores de pífano e com bambu da fazenda paterna em São Carlos fabricou o próprio instrumento. Hoje se divide entre composições, o projeto de hip-hop Riff de Damas e os shows da Höröyá. “Tem o pessoal que acha muito legal por ser uma mulher no sax e tem o cara que olha e aposta que você não vai dar conta.”