Rincon Sapiência: rap y lucha

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O preto é chave/ abram os portões. Os dois versos encerram o álbum de estreia do rapper Rincon Sapiência em clave de orgulho e reivindicação de direitos, igualdade e equiparação.

Galanga Livre cairia como luva ao Brasil de poucos anos atrás, mas a realidade de 2017 afronta feito pesadelo a arte afirmativa do paulistano nascido Danilo Albert Ambrosio há 31 anos, na Cohab I de Artur Alvim, Zona Leste de São Paulo.

Segundo a tradição oral de Minas Gerais, Galanga foi um rei africano do Congo que chegou escravizado ao Brasil do século XVII, tornou-se Chico Rei e acabou comprando a própria alforria e a de irmãos ao redor.

Rincon adapta a fábula (e/ou realidade) de Galanga/Chico Rei ao tempo atual, ou de instantes atrás, numa circunstância em que mesmo estando em desvantagem/ a sensação é de poder.

O álbum inicia-se por um Crime Bárbaro, sob o som sampleado de Jimi Renda-Se (1970), de Tom Zé. Galanga insurgiu-se contra a escravização e perpetra o desfecho temido por dez entre dez brancos no poder: Fugido, eu tô correndo pela mata/ na pele eu levo a marca da tortura/ (…) escravos apoiam o meu desempenho/ fui eu que matei o senhor de engenho.

A inspiração para o rap matador, ele explica, veio do reggae I Shot the Sheriff (1973), do jamaicano Bob Marley. “Eu estava vendo a apresentação dele num festival na Europa, aqueles brancos todos que tomam LSD e ficam doidões. Mr. Brown, que é o xerife, aparece e vai atirar nele.

Mas ele se antecipa e pum!, mata o Mr. Brown. Caramba, o cara está cantando sobre matar alguém e não soa agressivo. Não tem como questionar. Ninguém fica assustado quando assiste a um filme do Van Damme e ele mata o vilão. As pessoas até gostam, ‘uau, matou o vilão!’ Tento seguir na mesma linha”, provoca.

Crime Bárbaro mora no território dos símbolos. No roteiro inteiro de Galanga Livre, Rincon Sapiência filosofa à procura de diferentes formas de se libertar e de neutralizar, sobretudo, o senhor de engenho abstrato que se mantém vivo dentro dele próprio (e de cada um de nós, ouvintes).

“Já que Galanga é um personagem escravo, quem seria o Galanga Livre?”, indaga o artista. “Ele não é o cara que serve à casa. Ele é o dono da casa. É quando você sai do emprego formal porque vê que está gastando energia, se estressando, adoecendo, e não é por você, é por alguém que não é seu parceiro.”

O figurino se ajustaria com mais justeza a um Brasil onde feitores não estivessem empreendendo, por exemplo, algo chamado (por eles próprios) de “reforma trabalhista”.

Rincon é a contramão, em alta velocidade. Tô perto do fogo que nem o couro de tambor numa roda de jongo, rima, também na faixa de encerramento, a potente Ponta de Lança (Verso Livre). O autor viveu na pele a trajetória de autolibertação.

Trabalhou em empregos formais a que relegamos meninos como Danilo, do tipo office-boy e atendente de telemarketing. Estava nesse último “trampo”, quando resolveu parar tudo. Virou dono de casa, cuidando do filho (hoje com 9 anos), enquanto a companheira trabalhava fora.

“Fiquei só no rap, e deu certo. Ganhava mais que no telemarketing. Tinha mais tempo. Passei a ficar mais junto de meu filho”, lembra. “Ela chegava do serviço, tinha de estar a janta pronta. Confesso que é desgastante. Mas, em vez de ficar frustrado em casa, falei: vou fazer música até cansar.”

Ali, de modo artesanal, construiu e gravou Galanga Livre, mais um trabalho de excelência que se integra à produção de uma leva de novos rappers afiados, como Criolo, Emicida, Rael, Rashid, Ogi, Tássia Reis, Flora Matos, Projota, Rico Dalasam e (por que não?) os funkeiros MC Guimê e Anitta. Estrela em ascensão, Rincon será destaque no Coala Festival, em São Paulo, em 12 de agosto.

“O amor próprio cresce quando você vê que, sem o emprego formal, tem seu tempo, as condições de ser você, de vestir o que quer, comer o que quer”, afirma o trabalhador que já conhecia a precariedade bem antes das leis de Temer.

Volta para Casa, a propósito, retrata com precisão a falta de liberdade de quem, ao final da jornada diária, infelizmente não tem asas/ e precisa das ruas e das linhas do trem. Numa perspectiva feminina, o narrador expõe o retorno para casa na madrugada, o poste de luz apagado, o medo da violência sexual.

“A simbologia de matar o senhor do engenho é matar aqueles valores que privam nossa liberdade”, filosofa.

“O racismo priva nossa liberdade de deixar nosso cabelo ser armado, deixar o cabelo crescer. Minha mãe, por exemplo, não deixava. Fui careca anos, eu mesmo raspava meu cabelo. Para você ver como o assassinato do senhor de engenho é por partes, eu já ouvia rap, já tinha consciência racial, mas durante muito tempo andava muito de boné, tinha vergonha da minha cabeça.”

Tal experiência ele transformou no orgulho crespo e no orgulho preto que transborda de Ponta de Lança (quente que nem a chapinha, não/ crespos tão se armando/ faço questão de botar no meu texto/ que pretas e pretos estão se amando), Amores às Escuras (um casal de pele escura pela Gamboa/ curtindo amores às escuras) e A Coisa Tá Preta (se eu te falar que a coisa tá preta/ a coisa tá boa, pode acreditar/ seu preconceito vai arrumar treta/ sai dessa garoa que é pra não moiá).

Vestido de saia na capa do CD, Rincon reivindica a liberdade de gênero, enquanto tenta educar o filho para não crescer machistahomofóbico, racista.

Entre os admiradores da prosódia de Sapiência está um Mr. Brown que não é xerife, Mano Brown. “Rincon é uma geração que está bem armada, com bastante munição, bastante informação musical, histórica, política”, afirma o líder dos Racionais MC’s, com quem o discípulo diz ter descoberto a música de Tim Maia (graças às referências em Homem na Estrada, de 1993) e Jorge Ben Jor (por causa de Fim de Semana no Parque, também 1993).

“Ele dá uma aprofundada no estudo das palavras, da história negra, agora de uma maneira mais profunda, mais direcionada. Acho legal”, devolve o professor Brown. A consciência política transparece no respeito que Rincon afirma nutrir pela combalida instituição do voto.

Rincon e brown
‘Rincon é uma geração que está bem armada, tem munição, bastante informação musical, histórica, política’, elogia o ‘boss’ do hip-hop brasileiro

“Eu tinha bode de político, mas aí me falaram um detalhe muito interessante: preto não votava, mulher não votava, o voto não era democrático. Não vou botar a mão no fogo por ninguém, mas vejo que determinado político pode levar por um caminho mais favorável que outro. Então faço questão de ir até a urna e fazer minha escolha e participar desse processo.”

A consciência racial e a política caminham abraçadas em Galanga LivreEu não vou bater panela na varanda/ rua nóis vamos ocupar/ (…) lerê, lerê não vamos mais querer/ senzala nunca mais, diz a moderna faixa-título.

A Coisa Tá Preta complementa: Ritmo tribal no baile nóis ginga/ cada ancestral/ no tronco nóis vinga/ cada preto se sente Zumbi/ e cada preta se sente Nzinga. E Ponta de Lançaencerra a questão: Batemos tambores, eles panela/ roubamos a cena, não tem canivete (…) pra ficar mais claro eu escureci/ aquele passado não esqueci/ vou cantar autoestima que nem Leci (Brandão).

A leitura de Rincon sobre o golpe de Estado é cristalina: “Antes só eles iam para a faculdade, andavam de avião, consumiam, compravam. Quando as coisas democratizaram um pouco e os menos favorecidos começaram a ser protagonistas, se tornaram concorrentes, e isso se tornou uma situação a ser brecada.

Dando nome aos bois, se Lula é eleito e tem mais oito anos, onde vai chegar? Pessoal pensou ‘fodeu, vamos brecar esse processo, vamos falar que é meritocracia, que Bolsa Família é esmola’”. Se ele próprio é a revogação dos privilégios dos senhores de engenho, onde Rincon Sapiência vê o horizonte?

“A reviravolta passa pelo engajamento do povo. Essa situação de golpe pode levar o povo a se engajar”, sonha. A receita explícita está no encerramento de Galanga Livre sob referência de Umbabarauma (1976), o ponta de lança africano cantado por Jorge Ben Jor: Vamos atacar/ pra se proteger/ pra se destacar/ não temos que nos esconder/ é perder o pudor/ pra ganhar o poder/ sem deixar o amor.

Entre a fábula e a ação, existe um Brasil povoado de senhores de engenho simbólicos e reais. Se a chave é preta, os portões estão aí por se destrancar.

Publicado en CartaCapital
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