Tesoro escondido

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Um tesouro escondido sob a Catedral da Sé

Na Praça da Sé, a pouco mais de 300 metros do Marco Zero da grande metrópole e a 7 metros de profundidade (por onde passam até 100 mil pessoas em horários de pico), esconde-se um pequeno tesouro. Trata-se de uma construção subterrânea de 660 metros quadrados, ornamentada por colunas e cujo salão é ombreado por duas esculturas magníficas em mármore do artista Francisco Leopoldo (1879-1948), que foi colega de Victor Brecheret. A localização dessa galeria fica debaixo da Catedral, exatamente sob o altar da monumental igreja.

A novidade é a cripta da Catedral da Sé, templo neogótico projetado pelo engenheiro alemão Maximilian Emil Hehl (1861-1916), que foi inaugurada em 1919. A cripta de uma igreja é o local onde ficavam os túmulos dos mais destacados sacerdotes, aristocratas e membros do alto clero de uma comunidade. No caso da cripta da Sé, construída oito anos após a demolição da antiga catedral, a função de abrigar expande-se a partir deste mês e agora recebe a música popular também. Até março de 2020, o grande salão será palco de 30 concertos de música instrumental e canto coral brasileiros, com artistas já célebres (como Alexandre Penezzi e o Madrigal EnCanto) ou revelações (como o imigrante tunisiano Raouf Tamni, que toca o kanun, instrumento de cordas do século X). É a sugestiva série Concertos 100 Anos da Cripta da Catedral da Sé.

A acústica da cripta, característica da qualidade das igrejas (concebidas tradicionalmente para reverberar com perfeição o discurso e a música), é uma das atrações principais dessa série. Desafinado, clássico eternizado por João Gilberto, ensaiado por um trio de garotos que toca contrabaixo acústico, vibrafone e guitarra elétrica, parece ganhar um condimento milenarista no encontro com as colunas e o mármore.

Os concertos, de uma hora de duração, acontecem aos sábados, às 16 horas, e são gratuitos. A capacidade é de 80 a 120 pessoas, dependendo do local onde serão realizados. O padre da Catedral da Sé, o cura Luiz Eduardo Baronto, diz que o projeto é o ensaio de um diálogo da Igreja com a cidade e não se afasta do espírito da evangelização. “A igreja faz parte da história, e queremos dialogar com quem vem e quem não vem à igreja, ou quem vem com interesse cultural. A ideia é fazer com que, a partir da Catedral, a gente possa chegar às pessoas”, afirma.

Riquezas e relíquias

A cripta da Sé é depositária também de fascinantes evocações históricas e literárias. Repousam ali os restos mortais de um personagem crucial de Memorial do Convento (1982), um dos maiores romances do Prêmio Nobel de Literatura, o português José Saramago. Trata-se do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o Padre Voador. Gusmão, nascido em Santos (SP), realizou experimentos com uma máquina voadora chamada de aeróstato (o balão de ar quente) em 8 de agosto de 1709, diante do rei de Portugal D. João V. Ele teve a ideia após presenciar cascas de cebola se elevando no ar ao serem aquecidas por uma fogueira.

Embora debaixo da terra, a cripta flerta com os céus há muitas décadas. Por exemplo, o corpo de Alberto Santos-Dumont, o inventor do avião, ficou guardado ali entre julho e dezembro de 1932, durante a Revolução Constitucionalista, por segurança. Depois, foi transportado para sepultamento no Rio de Janeiro.

Nas galerias da cripta, em túmulos adornados por esculturas de bronze em tamanho real, há 32 câmaras mortuárias (18 delas ocupadas). Ali, repousam os restos mortais do arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, valente combatente dos direitos humanos no Brasil em plena ditadura civil-militar. Dom Paulo foi o mais recente a ser sepultado ali, em 2016. Estão na cripta também o cacique Tibiriçá (cuja tribo viveu ali onde hoje é o Pátio do Colégio, que foi um dos primeiros chefes tribais convertidos e é tido como primeiro cidadão paulistano) e o Regente Feijó (que governou o Brasil quando D. Pedro II era criança).

FACHADA DA CATEDRAL EXTEMPORÂNEA FOTO: JOTABÊ MEDEIROS)

Os restos mortais do cacique Tibiriçá vieram para a cripta da catedral em 1930, trazidos da Igreja Imaculado Coração de Maria, no bairro de Santa Cecília. A escultura da câmara de Tibiriçá não mostra um índio aculturado – pelo contrário, preserva as vestes indígenas e o ambiente natural em que viveu, uma concessão interessante da Igreja Católica. Ao contrário do Estado brasileiro do período colonial (e seus avatares, os bandeirantes), a Igreja estimava a vida dos índios por causa das almas, mas Portugal estava empenhado no genocídio (como, de resto, voltou a ser regra). O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o inventor do balão, teve o corpo trasladado de Toledo, na Espanha, onde ele morreu, em 1724.

A Catedral da Sé é uma igreja neogótica extemporânea, construída muitos anos depois da predominância arquitetônica desse estilo. Só foi inaugurada em 1954. Seu anacronismo construtivo (fora do seu tempo, foi erguida por técnicos e mestres de obras italianos) acabou se tornando seu trunfo – além da capacidade aglutinadora da praça em que se insere, com eventos históricos como o culto ecumênico que dom Paulo realizou em tributo a Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura, em 1975; e o Comício das Diretas Já, em 1984, para 300 mil pessoas. Para ajudar a familiarizar os espectadores com a mística da Catedral e seus segredos, Camilo Cassoli, diretor do projeto, espalhou recitais e concertos por diversas áreas da edificação, incluindo o monumental órgão italiano de 12 mil tubos.

Entre as atrações da arquitetura da cripta, há um conjunto de quatro vitrais feitos pela Casa Conrado, primeiro ateliê de vitrais do Brasil, criado em 1889 pelo imigrante alemão Conrado Sorgenicht (entre outros trabalhos, fez os vidros das janelas do Mercado Municipal e da Casa das Rosas, na Avenida Paulista). Na cripta, os vitrais são ornamentados com elementos da flora e da agricultura desenvolvidas no Brasil à época. Durante a construção da Catedral, os vitrais serviam de iluminação natural para a cripta, mas, quando a igreja ficou pronta, foram encobertos pela construção e hoje são destacados por iluminação elétrica. Os detalhes de metal foram fundidos em bronze no Liceu de Artes e Ofícios. Os relevos, produzidos pelo escultor sueco-brasileiro August Ferdinand Frick (1878-1939), destacam anjos com trombetas e uma ampulheta, e fazem alusão ao Juízo Final.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos do Brasil lançará, em 5 de setembro, selos comemorativos por ocasião do centenário da cripta. Será uma série de seis selos, que estão em desenvolvimento. O lançamento será na cripta.

Série Concertos 100 Anos da Cripta da Catedral da Sé

Todos os sábados, 16 horas, na Catedral da Sé (Praça da Sé, s/nº)

Grátis (ingressos devem ser retirados na igreja uma hora antes do concerto)

Carta Capital

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