Germinación del futuro

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Encabeçando a lista, e representando Cachoeira na Região do Recôncavo Baiano, teremos Voltei (2021), quarto filme inédito da dupla que deixou sua marca indelével no circuito desde 2017, Glenda Nicácio e Ary Rosa, com a estreia multipremiada de Café Com Canela. Desde então, lançaram praticamente um longa-metragem por ano, culminando nesta novidade que está chegando agora, e falam agora com exclusividade para CartaCapital.

CartaCapital: Como foi construir uma rede de afetos na realização desde seu primeiro filme, Café com Canela ?

Glenda Nicácio e Ary Rosa: Nós não queríamos só fazer um filme: queríamos criar uma estrutura de trabalho que não fosse só para a realização de “Café com Canela”, mas que começasse com ele e assim pudesse fortalecer um jeito de fazer cinema no interior. Assim, queríamos formar equipe, dar contas de demandas da região, como, por exemplo, o trabalho de Cenografia: fizemos uma Oficina para confecção dos cenários da personagem Margarida, onde participavam alunos da rede pública, parte da equipe de arte e moradores. O resultado foi a formação e a capacitação em marcenaria, pintura, confecção de objetos, criando uma equipe local de cenografia. Desde o início, o filme ganhava muito quando integrávamos a população. Era como se ficasse mais verdadeiro. Por exemplo, a confecção do figurino foi feita por costureiras da Cooperativa de Maragogipe (cidade vizinha). Elas intervinham no que era apresentado, afinal, existia ali uma criatividade e um conhecimento muito específico que elas eram  detentoras, e que compartilharam quando integraram a equipe do filme. Nenhuma delas nunca tinha trabalhado com cinema, mas isso era o que menos importava. É isso: cinema é para aproximar.

CC: Como analisariam a imersão representativa da região fielmente reproduzida no filme, no caso, o Recôncavo Baiano?

GN e AR: Não diríamos ‘fielmente’ porque não se trata de uma reprodução, mas de uma busca por recriar a Cachoeira que enxergávamos para esse filme. Por mais que a gente fique muitas vezes se alimentando de formas e inspirações do documentário, “Café com Canela” é uma ficção, e isso é importante a gente não perder de vista. Nós nos aproximamos muito do ‘real’, mas ele estava sujeito a um ponto de vista: ao jeito ‘Violeta’ (personagem) de ver a vida e as pessoas. A euforia vem quando essa ficção é construída por ‘gente de verdade’, gente comum que se aproxima da vida cotidiana, gente poucas vezes retratada no centro da História. Quando há um deslocamento do lugar da câmera, outras realidades emergem. É importante  denotar que o trabalho conjunto na direção, adaptando o roteiro escrito por apenas um deles, adveio de uma longa relação de confiança em parceria de trabalhos, desde os estudos aos curtas-metragens prévios aos longas, além do fato que ambos exercem mais funções e supervisão coletiva em outros departamentos: como Glenda na equipe de direção de arte e Ary na equipe de som. A parceria realmente agrega a subjetividade de ambos.

CC: Como é trabalhar em conjunto, compartilhando várias funções?

GN e AR: Fazer filme é por vezes uma tarefa solitária, estar junto diminui um pouco da solidão desse ofício. Nossa parceria começou há alguns anos, aprendemos a fazer cinema juntos, cada um com as suas vivências e referências. E nesse processo, sempre compartilhamos muito. Desde o roteiro até a  estruturação do projeto, do processo de captação até a gravação, da gravação à finalização, existe um tempo bastante vasto e angustiante, e nós fazemos parte de todas essas etapas. Planejamos juntos: somos produtores antes de tudo. O cinema que a gente faz é assim, vai se entrecruzando, afinal estamos falando de uma produção independente de baixo orçamento. É complicado. A gente passa muito tempo tentando financiar os projetos, mas é nesse período bem inicial que disparamos nossas intenções, e vamos construindo um filme. Quando chegamos na fase de pré produção o filme já está bastante sólido na nossa cabeça. É ai que a gente se separa, ou melhor, se expande para esses outros departamentos, buscando alcançar aquelas intenções…, aquelas conversas…, aquela atmosfera que já enxergamos para o filme. Esse percurso é igual à costura: o ponto que Ary dá aqui se comunica com o ponto que Glenda deu ali do lado, mesmo em direções diferentes vão se estabelecendo conexões. Isso porque confiamos muito no trabalho e na entrega do outro, então uma ideia de som acaba reverberando de forma indireta na arte e vice e versa

CC: Vocês acreditam que podemos estar no meio de uma primavera negra no cinema brasileiro?

GN e AR: Talvez ainda não estejamos numa primavera negra. Está germinando, e vamos ver no que vai dar. O fato é que a população negra está ocupando, está na frente e atrás das câmeras e isso tem gerado desconforto, revelando um cinema que por anos aprendeu a falar ‘sobre’, mas não aprendeu a ouvir (e tem tido dificuldades com isso). Que cinema é esse que não pode ser questionado? Que cinema é esse que julgava já ter dominado os papéis e suas funções? Quando negras e negros fazem cinema estão possibilitando também a formação de um público negro, possibilitando encontros que eram negados
para a comunidade negra.

Há quem não enxergue ou minimize a importância desse movimento que é na verdade devastador, nos mostrando que não existe um cinema, existem cinemaS, e devem existir cinemaS, assim, no plural mesmo. Não ser a única pessoa negra no set ou numa plateia de cinema: o resultado disso não é apenas social, mas é econômico também. Descentralizar a produção é descentralizar o poder.

Carta Capital

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