Golpe en 1964, golpe en 2016

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Nos 50 anos da morte do pai, João Vicente Goulart diz que país caminha para uma ditadura

João Goulart ficou 12 anos no exílio, com a esperança de que um dia retornaria ao Brasil. Mas a volta não aconteceu e, em 6 de dezembro de 1976, o ex-presidente morre em Mercedes, na Argentina. As memórias desses anos de exílio são narradas pelo seu filho, João Vicente Goulart, que lança nesta semana a obra Jango e eu: memórias de um exílio sem volta (editora Civilização Brasileira).

Segundo João Vicente, Jango achava que o golpe seria “apenas mais uma quartelada”, mas não foi o que ocorreu. A família viu a ditadura se aprofundar e teve que viajar a outros países. “A gente se torna, como digo no livro ‘aves peregrinas’”. Em entrevista à Fórum, João Vicente fala sobre a obra, a convivência com a família e amigos, fazendo um resgate dos diálogos com o ex-presidente.

Sobre 2016, João Vicente Goulart acredita que “o país está caminhando para uma ditadura, sem dúvida alguma, de supressão dos direitos fundamentais, supressão dos direitos dos trabalhadores”.

Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

O livro

Tínhamos várias cartas, mas pessoais. Não é um livro de academia. Temos muitos documentos, inclusive que estavam nas mãos do SNI e de outros órgãos de informação, mas nós não publicamos essa parte técnica, não é um livro para pesquisa. O livro tem um recorte, não traz os acontecimentos da morte de Jango, a exumação. E termina no exílio mesmo, porque ele não teve a volta que ele tanto sonhava, de retornar ao País. Começa no dia do golpe e termina no dia da morte dele. Tudo que veio a ocorrer depois, como a Operação Condor e a exumação, está fora. O recorte é do dia 2 de abril de 1964, quando nós chegamos no Uruguai, ao dia 6 de dezembro de 1976, quando ele faleceu.

É basicamente um diálogo entre um pai e um filho no exílio. Fui para o exílio com 7 anos e cresço ao lado de meu pai, que, casualmente, era um ex-presidente da república. O livro é a relação entre Jango e eu, da forma como ele se expressava, falava com uma criança, as dificuldades em si do exílio, de como chegamos a certo momento a ter que passar por vários países, a esperança da volta. No começo ele mesmo pensava que o golpe de estado seria apenas mais uma quartelada, como tantas que houve no Brasil. Esperava que em 1965 houvesse eleições. E que qualquer presidente que fosse eleito teria que dar a anistia, garantindo o retorno de todos aqueles que haviam sido cassados, procurados e perseguidos com o golpe.

O livro fala também da eterna luta dele pelo seu país. Acho que isso é o mais importante de tudo. Tem alguns documentos inéditos, entrevistas, que mostram a visão dele, o seu pensamento sobre economia, sobre desenvolvimento, sobre as reformas de base, que ele não pode fazer no Brasil. Todas elas colocadas de um ponto de vista do dia a dia de uma família que sofre no exílio. E a gente se torna, como digo no livro “aves peregrinas”. Aquilo que ele imaginava que seria uma quartelada, à medida que o tempo passa, vai se tornando mais difícil. Não era simplesmente uma quartelada brasileira, era todo um plano arquitetado pelo Departamento de Estado americano para a América Latina. Cai o Brasil, depois cai a Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Equador. Chegou a um ponto, em 1976, o ano de seu falecimento, que quase todos os países latino-americanos tinham instalado ditaduras militares com o apoio do Departamento de Estado Americano. Relato todo esse sofrimento de passar de país em país, Uruguai, Paraguai, Argentina, terminamos na Europa, na Inglaterra. Tudo isso era um sofrimento constante com a esperança da volta.

Memórias marcantes

São várias passagens. Na verdade Jango, quando cai em 1964, cai pelos seus acertos, como dizia Darci Ribeiro, cai porque queria fazer do Brasil uma sociedade mais justa, através das reformas de base – a reforma agrária, a tributária, educacional. Entre as memórias, tem a relação dele com Paulo Freire, tivemos várias vezes com Paulo no exílio. A relação com a economia, já que estivemos várias vezes com Celso Furtado, que foi seu ministro. Ele brincava muito: ‘nós é que éramos os incapazes, daí os militares brasileiros entregam toda a economia, prometem como Delfim Neto prometia na época, crescer o bolo para depois dividir’. Não dividiram com ninguém, ao contrário, alegaram que pegaram um país com uma inflação de cerca de 60% ao ano e entregaram com 200% depois de 21 anos e uma dívida multiplicada por cem.

Essa é a realidade que vamos contando no livro, essas derrotas, vamos dizer assim, diárias, mensais e anuais, que a gente passou no exílio sob um ponto de vista de um pai para um filho. A gente reconstrói esses diálogos, dele com seus amigos, com Celso Furtado, com Raul Ryff, Darci Ribeiro, Miguel Arraes. Contamos também as tristes saudades. Tivemos que conviver com uma esperança durante 12 anos que não se realiza. Mas ele tinha a absoluta certeza de que o seu posicionamento no exílio era o correto, e que ele voltaria ao Brasil depois que o último exilado voltasse. Na medida em que as ditaduras foram se formando na América Latina tivemos que sair do Uruguai, em 1973, depois Paraguai. Fomos à Argentina a convite do Perón, porque havia a partir dali uma nova esperança para as democracias latino-americanas. São inúmeros os amigos latino-americanos que sofreram esse tipo de pressão, sem poderem voltar a seus países de origem. Essa democracia demora, só vem a acontecer anos depois. No Brasil, a anistia só veio em 1979. Mesmo depois da anistia nós viemos a ter eleições diretas para presidente da república só dez anos depois, em 1989.

Envenenamento e exumação

Evidente que eu acredito que meu pai foi envenenado. Nós temos depoimentos de agentes, documentos de monitoração, temos um monte de circunstâncias. Fizemos a exumação, existe uma substância que não deveria estar ali, mas em condições mínimas, que não permitem tecnicamente dizer que foi ela que poderia ter feito esse envenenamento. Temos o pedido ao Ministério Público brasileiro, que é tão zeloso em outras coisas, até hoje não pediu oitivas aos agentes americanos.

Tudo isso sobre a morte dele não está na conjuntura do recorte do livro. Quem sabe entra num segundo livro. Temos mais de 7 mil documentos que mostram monitoramento, mas estamos esperando o posicionamento do zeloso Ministério Público do Brasil para que tenha coragem – já que tem tanta coragem para algumas coisas – de pedir a auditiva. Outros países, como o Chile, fizeram.

Resistência ao golpe 

Ele tinha uma personalidade profundamente pacifista para com seu povo. Em 1964 nós tínhamos uma esquerda esfacelada, uma direita raivosa, e, pior do que isso, nós tínhamos o apoio da inteligência americana, e esperavam uma resistência muito grande. Meu pai saiu de Brasília, foi até Porto Alegre, conversou com o general Ladário Telles e sentiu que não existia condições de resistir. Uma ordem dele de resistir ao golpe de estado seria uma carnificina e uma guerra civil no Brasil, porque ele tinha informação, que veio à tona cerca de dez anos depois, da quarta frota americana. Havia aviões, navios-tanque, armas atômicas, que dariam suporte aos militares golpistas.

Ele tinha esse conhecimento, não resistiu e acho que essa foi, sem dúvida alguma, uma grande vitória do presidente João Goulart. Porque ele evita um derramamento de sangue em nosso país e evita também a divisão territorial do Brasil, como era de praxe dos Estados Unidos fazerem, como, por exemplo, no Vietnã, na Coreia, na Alemanha, pós-Segunda Guerra.

Isso eu conto no livro, no seu dia a dia, ele tinha certeza que um dia a história iria fazer as homenagens necessárias e o reconhecimento de que ele era merecedor, pena que até hoje nós não conseguimos fazer as reformas de base que ele queria. E Jango foi o único presidente constitucional republicano de nosso país que morre exilado.

Golpe em 1964 e golpe em 2016

O livro é interessante até pelo que aconteceu neste ano. Para nos dar conta de que as ditaduras estão se transformando. As ditaduras militares hoje mudaram de aspecto. Hoje nós trocamos o “cap” pelas togas. E este país está caminhando para uma ditadura, sem dúvida alguma, de supressão dos direitos fundamentais, supressão dos direitos dos trabalhadores, dos pontos educacionais freireanos, privatização de meios fundamentais, como a Petrobras.

A PEC 55, por exemplo, é uma reforma ao contrário daquelas que Jango pregou, que eram em benefício dos trabalhadores, daqueles que são verdadeiramente os donos do país e não as empresas multinacionais, que hoje controlam toda a nossa economia.

Publicado en Revista Forum
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