Las preguntas

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Xerxenesky: «O escritor precisa reconhecer que é um parasita social»

Por Clarissa Wolf

As Perguntas, de Antônio Xerxenesky, caiu em minhas mãos por acaso – e só foi sair duas horas depois, com a leitura obcecada finalizada. Um enredo que maquia discussões existencialistas como livro de puro entretenimento, uma protagonista feminina construída com maestria por um escritor homem, uma narrativa que engana o leitor com truques roubados do cinema, e um resultado que revoluciona a realidade da literatura contemporânea brasileira hoje. Leia a entrevista com o autor abaixo.

Como foi a criação da Alina? Por que escrever uma protagonista feminina?

Escrever uma protagonista mulher é algo que tento fazer desde o meu livro de contos, A página assombrada por fantasmas. Em um dos contos, fiz uma personagem feminina um tanto estereotipada, e as leitoras me chamaram a atenção. Desde então, virou uma espécie de desafio tentar criar uma personagem menos clichê. Comecei em F e segui em As perguntas.

O que me impulsionou, no entanto, não foi um gosto pelo desafio. Acho que a literatura brasileira contemporânea tem uma tendência repulsiva de colocar no papel apenas um espelho direto da própria vida do(a) autor(a). Ao criar uma narradora do sexo oposto, eu seria forçado a sair do meu lugar de conforto, a pensar a partir de outro ponto de vista.

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É um exercício importante na ficção que não pode ser menosprezado. No caso de Alina, ela teria muitos pontos de contato comigo – assim como ela, eu também cresci sem religião, também tinha um emprego num cubículo na Av. Paulista, também batia cartão e almoçava em restaurante a quilo, também possuía uma formação acadêmica que não usava para nada no meu emprego. Ou seja, se ainda por cima fosse um homem, seria próximo demais da minha vida. Torná-la mulher também me obrigou a fazer muitos «e se?» e foi importante para questionamentos embutidos no livro acerca das doutrinas do ocultismo e a cultura patriarcal das religiões de massa.

Eu tenho muita curiosidade sobre cultos – Jim Jones, Charles Manson… Esse é um tema que me atrai muito. É algo que te atrai também? Por que decidiu colocar um culto no livro?

Sim, sociedades secretas foi algo que sempre me atraiu, e no F também aparece uma na parte final do livro. Acabei pesquisando muito do assunto para o As perguntas, desde os Rosicrucianos a Golden Dawn, mas no final cortei muito do blábláblá sobre esses temas, pois acho que interessaria apenas a uma minoria. Não queria que ficasse um livro didático ou expositivo, como Do inferno, de Alan Moore, que é uma obra-prima, mas tem capítulos que parecem tirados de um livro de não-ficção.

O que me seduz nas sociedades secretas, creio, é a ideia de «fazer parte de algo maior que você». Todas as minhas personagens, desde os primeiros contos, sofrem por não se sentirem integradas, são tomadas por uma solidão desoladora. Em F, a protagonista Ana não se identifica politicamente com nenhum dos movimentos que se agitam na época; em As perguntas, Alina não se identifica com crença religiosa alguma. Em ambos os casos, há um desejo de pertencimento muito forte que serve de impulso narrativo.

Como foi a criação desse enredo de suspense que passa num período curto de tempo? Existia alguma tentativa de desafiar a norma da alta literatura misturando um gênero que é considerado ruim com uma narrativa boa?

Desde Areia nos dentes, o meu faroeste metalinguístico, eu tento mesclar meus gostos diversificados, que vão desde videogames e filmes B de terror a «alta literatura», entre aspas. Meus primeiros ídolos literários, quando comecei a descobrir a literatura contemporânea – Thomas Pynchon sendo o maior nome -, fazem justamente isso, apropriam-se de gêneros considerados menores e buscam reinventá-los, subvertê-los. Tomam convenções do gênero e desviam da rota comum.

Para um livro de terror tradicional, não faz sentido uma trama tão condensada, não faz sentido o final que bolei, não faz sentido um capítulo composto apenas de perguntas. Sei que, ao fazer isso, desagradarei tanto os puristas de gênero como os leitores «sofisticados» (mais aspas irônicas) que rejeitam a cultura pop. Meu plano sempre foi construir pontes entre as supostas «alta» e «baixa» literatura, mas a verdade é que acabo às vezes caindo num limbo entre uma coisa e outra, desagradando ambos os polos.

Como foi estruturar o romance? Como surgiu a ideia de escrever metade em terceira pessoa e metade em primeira?

Isso foi o resultado de uma longa, digamos, pesquisa artística que faço acerca da «noite». A questão da noite aparece em todos meus livros, em maior ou menos escala. Em um ensaio sobre o cinema de Michael Mann que publiquei na revista Serrote em 2015, refleti a fundo sobre como a noite era registrada de maneira a colapsar as identidades dos protagonistas nos filmes de Mann. Então decidi fazer algo similar no meu romance: narrar o dia objetivamente, em terceira pessoa, como se filmasse em 35 milímetros, e narrar a noite em primeira pessoa, como se filmasse em digital, com superexposição que levava a ruídos, granulados e a uma permanência de rastros da luz.

Como foi que você se descobriu escritor? Escreve desde cedo? Quando e como decidiu levar isso a sério?

Escrevo desde os dezesseis. Publiquei cedo demais porque ganhei um concurso da prefeitura de Porto Alegre. Na época, me levava muito a sério. Várias vezes me levei a sério. Quando você é escritor, começa a publicar e alguns dizem que você é muito bom, o pior que pode acontecer é você acreditar nelas, pois isso prejudica a autocrítica e deixa você com um ego detestável. Você acha que vai «virar algo», vai se tornar importante.

Quando fui escolhido pela lista da Granta, por algumas semanas acreditei mesmo que era um dos melhores jovens autores do Brasil. Isso é um veneno. Precisei destruir essas ilusões para voltar a escrever. Acho que o escritor precisa se olhar no espelho e reconhecer que é um parasita social, que ninguém se importa com o que ele tem a dizer. Só assim se atinge algum nível de liberdade. Sinto que cheguei a essa conclusão lá por 2012.

E, curiosamente, os meus dois livros que considero bons, que não passo vergonha por ter escrito, F e As perguntas, foram criados depois disso.

Hoje em dia, me considero um escritor de ocasião. Estou há quase dois anos sem escrever algo que presta (finalizei a primeira versão do As perguntas em 2016). Não ganho dinheiro com a escrita, meus livros são um fracasso de vendas, quase não apareço em eventos e, quando sou convidado, sinto que estou interpretando um papel. Adoraria que as coisas fossem diferentes, mas passo 90% do meu tempo tentando pagar as contas – traduzindo, sendo ghostwriter e em outros trabalhos não relacionados a literatura. Meu sonho era ser um daqueles escritores escandinavos que podem viver do próprio ofício. Mas, por outro lado, é bom. Como quase não tenho tempo para escrever, só vou sentar para fazer um novo romance quando tiver algo realmente importante para dizer.

Quem da literatura contemporânea você gosta de ler?

Gente demais, embora eu tenha deixado de acompanhar tão atentamente o cenário dos novos autores desde que comecei a escrever minha tese de Doutorado, quatro anos atrás, o que engoliu meu tempo livre para leituras por prazer. Um autor novo que surgiu do nada e me impressionou muitíssimo foi o Tobias Carvalho, premiado do SESC, que acaba de publicar seu primeiro livro de contos, As coisas, com meros vinte e poucos anos.

Outro jovem na faixa dos vinte que me deixou boquiaberto foi o paraense Adriano Wilkson, cuja obra de não-ficção A grande luta é tão bem escrita que chega a ser intimidante. Parecia que eu estava lendo Norman Mailer. A poesia brasileira também está passando por ótima fase na última década. Destaco na área a Angélica Freitas, para mim a melhor poeta em atividade.

Muito se fala da crise da literatura, que o romance morreu, tudo isso. Como você vê isso?

De fato, a literatura virou um nicho cada vez menor, até por uma questão de quantas coisas disputam as nossas atenções. Há anos se diz que no Brasil há aproximadamente 3 mil leitores de ficção adulta. A impressão que eu tenho é que esse número vai diminuir cada vez mais. Parece que hoje em dia estamos competindo não apenas com outros meios narrativos audiovisuais que demandam muito tempo (séries de TV que consomem 50 horas das vidas das pessoas, videogames com campanhas longas) mas com as notícias e as redes sociais. Sentar e ler um romance de 400 páginas no meio do apocalipse político e das guerras culturais sendo travadas na internet parece uma atividade excêntrica.

Você está trabalhando atualmente em algum novo livro? Pode falar?

Escrevi 30 páginas de um romance maluco sobre partículas elementares, a descoberta da matéria escura e imortalidade no pós-guerra. Ficou uma porcaria e apaguei tudo. Tenho feito anotações e pesquisa para um dia, quem sabe, começar a escrever um romance novo.

Que dica você daria pra alguém que está começando?

Só escreva se você realmente acha que tem algo a dizer. Não escreva por vaidade, para tentar ganhar prêmios, para vender livros. Escreva sem concessões. Quem tem que gostar do livro é você. Escreva o livro que ainda não existe nas livrarias.

Essas dicas podem parecer óbvias, mas juro que só as assimilei de verdade lá por 2012, depois de ter publicado três livros.

Considerando a treta dos booktubers, a crise do mercado, qual você acha que é o futuro da literatura como mercado/arte/consumo?

Sou pessimista.

A crise do mercado atual é muito, muito profunda, e pouco tem se falado disso fora dos nossos meios. A quase falência da Livraria Cultura e da Saraiva vão forçar as editoras a reduzirem o número de lançamentos, tanto internacionais como nacionais, ou seja, o público brasileiro terá menos acesso a novas obras literárias e ficará mais difícil para novos autores surgirem no mercado.

Moro em São Paulo e não serei abalado como consumidor pelo fechamento de algumas livrarias, mas para quem mora fora dos eixos culturais do país, a situação será catastrófica. Como aumentar o número de leitores com livrarias fechando em cidades onde estas grandes redes eram a única opção? O resultado é que a cultura se concentrará ainda mais no sul e sudeste. Isso é um desastre.

Acho que um dos futuros mais otimistas seria o Brasil se reorganizando como a Argentina, isto é, com várias, várias editoras «médias» ao lado de umas poucas editoras imensas com capital estrangeiro, e livrarias diversificadas, sem tantas grandes redes.

O futuro pessimista é a Amazon destruindo com tudo e o novo governo arruinando a cultura do país.

Sobre booktubers etc., acho que todos nós (escritores, leitores, envolvidos com cultura) temos que aprender a deixar qualquer elitismo de lado e valorizar todos os meios de difusão de pensamento e discussão literária. Embora eu não tenha o hábito de assistir a canais de YouTube, sei que para uma nova geração este é um meio riquíssimo, um fórum sem hierarquias (ao contrário do jornalismo) para o debate literário.

Nessa época tão catastrófica, politicamente falando, não podemos nos dar ao luxo de rejeitar espaços de debate cultural.

Carta Capital

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