El escritor del trópico

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Gramiro de Matos, o tropicalista esquecido, volta às livrarias

“O folgado tem talento, só que é maluco, mas maluquice passa”, disse Jorge Amado à sua esposa, Zélia Gattai, no início dos anos 1970, sobre um jovem baiano cabeludo que lhe havia apresentado seus escritos. O “maluco” era Ramiro de Matos, mas assinava Gramiro (em homenagem ao “avô espiritual”, o poeta Gregório de Matos), ou, ainda, Ramirão, ão, ão. Morava no Rio, fazia parte do movimento tropicalista, era amigo de Waly Salomão e Torquato Neto, frequentava as Dunas da Gal e se considerava, mais ou menos como todo mundo ao seu redor naquela época, porta-voz de uma nova e malemolente contracultura.

O nome pode não dizer muita coisa para as gerações mais jovens. E talvez nem para as mais velhas. Embora seus dois primeiros livros — os ambiciosos “Urubu Rei” e “Os morcegos estão comendo os mamãos maduros”, ambos fora de catálogo — tenham sido elogiados pela crítica na década de 70, o autor logo caiu no esquecimento na década seguinte. Hoje, raramente é citado entre as principais figuras literárias da sua geração, e sequer ganhou verbete na Wikipedia. Uma omissão que poderá ser revertida agora com a reedição de uma de suas mais experimentais — e obscuras — obras: o romance “A conspiração dos búzios”, publicado originalmente em mimeógrafo, em 1978, e que acaba de ser resgatado do limbo pela editora catarinense Cultura e Barbárie.

Mistura incomum de roteiro de cinema com narrativa histórica, o livro reencena a Conjuração Baiana do século XVIII, numa espécie de paródia épica que oscila entre lirismo, surrealismo e documentário. É a chance de redescobrir um tropicalista esquecido, óvni literário, de escrita inclassificável, que desde os anos 1980 abandonou os círculos literários para levar uma vida sossegada em Salvador. Alheio às comemorações dos 50 anos da Tropicália (que começam oficialmente em outubro), passa o seu tempo administrando uma pousada, comentando política no Facebook e colecionando moedas antigas (é membro da Sociedade Numismática de São Paulo).

— A cultura vem se desvalorizando no Brasil a cada dia, um empobrecimento estético terrível, não há mais movimentos culturais — diz o autor, justificando seu sumiço. — Não sou considerado escritor oficial, mas maldito, porque tenho espírito crítico. Nos meus livros, previ tudo isso que está acontecendo no país agora.

Nascido em 1944, em Iguaí, teve uma juventude movimentada. Foi motorista de caminhão, madeireiro, caixeiro viajante, e, finalmente, estudante de letras, hippie e literato. Levado ao Rio nos anos 1970 por uma namorada, infiltrou-se na piração artística da cidade. Seus dois primeiros livros eram caldeirões pós-modernos. Misturavam um pouco de tudo: prosa, poesia, dialetos indígenas, linguagem de computador, mitologia negra e portunhol selvagem. Assim como Waly e outros de sua geração, sonhava com uma literatura que não cabia apenas na literatura. Seu hermetismo intransigente, porém, destoava dos demais.

— Naquela época, estávamos buscando inovações para fazer uma anarquia da cultura — lembra Gramiro. — Eram provocações, porque se sentia que havia a necessidade de um movimento cultural, que já era feito na música, mas que faltava na literatura.

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Tempos depois do primeiro encontro, Jorge Amado não apenas confirmou a sua impressão sobre aquele hippie de jeans surrados, como foi além: espalhou por aí que se tratava “da mais nova experiência da linguagem depois de Guimarães Rosa”. Com a chancela do ilustre conterrâneo, ganhou uma bolsa para estudar em Portugal, onde presenciou a agonia do amigo Glauber Rocha (em seu leito de morte, o cineasta teria lhe confidenciado que Gramiro foi sua maior influência na literatura). No exterior, o escritor investigou os impactos da poesia brasileira modernista nos países africanos de língua portuguesa. Essa pesquisa motivou “A conspiração dos búzios”, seu terceiro livro.

A narrativa começa em plena guerra: personagens saem do Pelourinho para serem enforcados na praça da Piedade. Na passeata nefasta, o autor vai mostrando a cidade, suas casas antigas, as belezas naturais e a vida dos personagens. Estruturando as cenas como “filmagens”, transforma a Bahia antiga em cidade cenográfica — uma Cinecittà versão acarajé e dendê. Na verdade, o próprio livro é uma batalha campal da linguagem, que usa o idioma português para discutir a relação colonizador-colonizado.

Para o editor Leonardo D’Ávila, responsável pela reedição, a maior força de Gramiro se dá justamente nessa expressividade da fragmentação na língua, “a descrição dolorosa de violências que nunca se ausentaram da História do Brasil e do choque de padrões estéticos”.

— Gramiro foi um dos mais jovens do grupo tropicalista, sendo um autor que começou a publicar quando o movimento já estava em crise — explica o editor. — Nesse aspecto, seu segundo livro, “Os morcegos…” já manifesta uma linguagem mais marcada pela violência. “Me segura q’eu vou dar um troço”, de Waly, também possui essa característica, a qual contribuiu para uma aproximação de ambos os autores pela crítica.

Em “Uma literatura nos trópicos”, de 1978, o crítico Silviano Santiago dedicou um capítulo inteiro à dupla Waly e Gramiro, tratando-os com a mesma importância. Criou até um termo para definir a produção deles: “leitura da curtição”.

— Para Gramiro, os textos não existiam para serem lidos no sentido tradicional, mas para serem curtidos nos seus babados e fragmentos. Eles têm uma visão do político que não é sociológica, mas lúdica — diz o crítico, que arrisca uma teoria para o silêncio em torno do autor de “Urubu-Rei”:

— Foi o mais radical da sua geração, e por isso não deixou discípulos. E ele próprio parece não ter continuado sua obra. É o que João Cabral dizia: se você não publicar de dois em dois anos, você “morre”.

Quando Gramiro voltou ao Brasil, nos 1980, continuou sendo considerado um autor impenetrável pelas novas gerações. Decepcionado com a falta de interesse das universidades pelos estudos africanos, afastou-se aos poucos da escrita e da academia. Abriu um comércio, virou marchand, depois colecionador. Sua paixão atual, que herdou do pai, é viajar pelo país em busca de moedas raras.

Como previu Jorge Amado, a maluquice parece ter passado. Ou, na verdade, nunca existiu. Será? É confuso mesmo, mas o ex-Ramirão, ão, ão explica, numa ponderação que parece trair o antigo aumentativo:

— Nunca fui maluco de fazer coisa sem sentido, apenas rebelde e curtidor, mas sempre moderado e muito reflexivo, pensando muito antes de falar, com formação democrática e espírito inovador. Quando revejo o que escrevi anos atrás, não consigo entender de onde tirei aquela potência. Muitos falaram que foi o meu auge.

«A Conspiração de Búzios»

Autor: Gramiro de Matos

Editora: Cultura e Barbárie

Páginas: 176 páginas

Preço: R$ 40 reais

Publicado en OGlobo

Gramiro de Matos: arqueologia de um autor ‘impenetrável’

O editor e pesquisador Leonardo d’Ávila chegou à obra de Gramiro de Matos graças a um esforço coletivo da Universidade Federal de Santa Catarina para reler autores que poderiam ser identificados como pós-tropicalistas. O autor baiano, que participou tardiamente do movimento junto com Waly Salomão, Torquato Neto e outros, andava completamente esquecido. Nos anos 1970, ele lançou livros elogiados pela crítica, como «Urubu-Rei» e «Os morcegos estão comendo mamãos maduros», que desafiavam a leitura por seu experimentalismo intransigente. Em seguida, foi estudar em Portugal e saiu do radar. O livro do autor que d’ Ávila reedita agora, pela Cultura e Barbárie, é uma obra obscura e rara do autor, «A conspiração dos Búzios». Publicada originalmente em 1978, só havia ganho até então uma versão artesanal.

Gramiro, inclusive, andava tão esquecido que nem mesmo seus amigos próximos lembravam dele. O editor só conseguiu contatá-lo após uma busca online — encontrou-o graças a um comentário que havia feito em uma reportagem na internet. A partir daí, veio a ideia de relançar o livro, que acaba de chegar às livrarias. Em entrevista ao GLOBO, Leonardo d’Ávila explica a importância de recuperar a obra de Gramiro de Matos, quase 40 anos após seu lançamento.

Depois da edição original publicada de forma artesanal, o livro nunca mais foi reeditado? Qual foi a repercussão do livro na época?

O livro foi publicado em 1978 apenas em uma edição artesanal e pouquíssimo conhecida, a qual contou com uma capa magistral elaborada por Mário Cravo Neto. Contudo, a raridade da edição não foi a única responsável pela pouquíssima repercussão à época, haja vista que seus outros livros publicados também não tiveram grandes tiragens e, mesmo assim, conseguiram alguma visibilidade no cenário cultural brasileiro, como «Urubu-Rei», de 1972. Possivelmente, mais do que pela raridade do livro, a pouca difusão pode ter ocorrido pelo fato do autor ter se afastado do Brasil e de seus meios artísticos durante seu doutorado entre Portugal e a África de língua portuguesa (1974-1978). No mais, à época da edição artesanal, o regime militar ainda estava em plena vigência e, em momentos como aquele, a recepção de um livro, ainda que não estivesse necessariamente impossibilitada, tornava-se muito imprevisível. De qualquer modo, é interessante destacar como alguns elementos do livro, a exemplo da descolonização e da menção de ideias de negritude, tenham se dado em concomitância com os Cadernos Negros do grupo Quilombhoje, que passou a reivindicar uma literatura afro-brasileira. Ainda que haja infinitas diferenças entre a obra de Gramiro e a desses autores afro-brasileiros, não se pode negar que são diferentes manifestações de uma mesma atmosfera cultural. Portanto, mesmo que não tenha sido conhecido pelo leitor brasileiro nos anos 70, não seria possível dizer que «A Conspiração dos Búzios» foi um trabalho isolado ou fora de contexto.

«Romance histórico» é um termo correto para definir de «A conspiração dos búzios»?

A princípio, não seria possível reconhecê-lo enquanto tal. Isso porque o autor não trata de personagens médios dentro de uma dinâmica social que termina por tornar protagonista. Como retrata com minuciosidade os heróis da Revolução dos Búzios (também conhecida como Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana, etc), haveria até certa tonalidade épica, a qual se desfaz completamente quando surgem documentos oficiais do século XVIII ao lado de jogos de adivinhações. Além disso, o próprio termo romance já seria impróprio quando o livro apresenta divisões como um roteiro cinematográfico. Ainda assim, o termo romance histórico é importante enquanto um fundamento paródico para essa prosa fragmentária, própria de um contexto de contracultura. Há de se reforçar, assim, o esforço jocoso para jogar com esse gênero literário. Entretanto, ainda que haja paródia e certo formalismo na linguagem, a maior força da literatura de Gramiro de Matos se dá na expressividade da fragmentação na língua, na descrição dolorosa de violências que nunca se ausentaram da história do Brasil e no choque de padrões estéticos mediante experimentação. Todos esses desdobramentos na língua, nas narrativas históricas e nos gêneros literários possuem uma inegável historicidade.

Antes de ir para a África, qual era o lugar de Gramiro no movimento tropicalista?

Gramiro participou do movimento, mas foi um dos mais jovens do grupo no Rio de Janeiro, sendo um autor que começou a publicar quando o tropicalismo já estava em um momento de crise. Nesse aspecto, seu segundo livro, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros, de 1973, já manifesta uma linguagem mais marcada pela violência do que pela “curtição”. «Me segura q’eu vou dar um troço», de Wally, em grande parte, também possui essa característica, a qual, aproximada a um trabalho igualmente complexo com a língua, contribuiu para uma aproximação de ambos os autores pela crítica. O trabalho mais significativo nesse sentido foi o de Silviano Santiago, que, em Uma literatura nos trópicos, dedicou um capítulo aos “abutres” Wally e Gramirão, tratando-os com igualdade de importância ou de valor. Ainda assim, Gramiro foi considerado sempre o autor mais impenetrável por boa parte dos próprios poetas marginais. Inclusive em uma rápida conversa que tive com Chacal no ano passado, o poeta afirmou ter muita dificuldade para compreender Gramiro e que não se identificava com tamanho experimentalismo. Por isso, Gramirão, como era conhecido, teve um lugar de destaque no tropicalismo e na literatura marginal, ainda que esse lugar tenha sido o de “autor incompreensível”, o que também pode ter contribuído para a sua menor projeção, não apenas em relação ao público ou à crítica, mas entre seus próprios companheiros. Possivelmente «A Conspiração dos Búzios», escrito em uma prosa um pouco mais convencional, poderá relativizar esse preconceito.

A questão da língua como forma de resistência, e a relação entre colonizadores e colonizados através da língua, são importantes na obra de Gramiro, em especial na «Conspiração dos Búzios». Outros escritores de língua portuguesa foram tão longe quanto ele nesse aspecto?

Em relação à criação artística, pode-se dizer que há outros que se destacam tanto quanto ele. Isso porque as ex-colônias portuguesas foram verdadeiras “Mecas” para a contracultura brasileira tanto quanto a Índia ou o Marrocos o foram para a contracultura de outros países. Um dos maiores autores a produzir na África uma arte dionisíaca – ou melhor, de Exu – foi José Agrippino de Paula, cujas filmagens das danças de Maria Esther Stockler, se não são representações do processo de descolonização, certamente são vestígios da importância da contracultura enquanto um dispositivo de aproximação entre Brasil e África nos anos 60 e 70. Já em relação a estudos acadêmicos, há, sim, uma importância única da parte de Gramiro de Matos. Sua tese doutoral, financiada pela Fundação Caloustre Gulbenkian, investigou os impactos da poesia brasileira modernista dentro das literaturas de países africanos de língua portuguesa e é razoavelmente conhecida por pesquisadores desse ramo de estudo. Certamente os conceitos e métodos da literatura comparada mudaram bastante desde aquela época e existem trabalhos mais detalhados sobre o mesmo tema. Ainda assim, o trabalho de Gramiro é singular e insuperável no fato de haver sido realizado em contato direto com poetas africanos em meio às próprias lutas de descolonização.

Pretende editar outros livros de Gramiro fora de catálogo?

«A Conspiração dos Búzios» era uma lacuna da obra de Gramiro que necessitava passar por um processo de editoração e divulgação para ser finalmente conhecida pelo leitor brasileiro. Há grande interesse no relançamento de «Urubu-Rei» e de «Os morcegos estão comendo mamãos maduros». Tais edições certamente se justificariam pela própria possibilidade da inclusão de textos que não fizeram parte daquelas edições, mas que compunham a coletânea original. Ainda assim, as reedições teriam de respeitar o fato de Gramiro ser um autor vivo, não sendo cabível enquadrar sua obra enquanto material de arquivo ou edição crítica. No mais, o interesse renovado pelo sucesso de vendas de Leminski ou Ana C., e seus laços com Gramiro, tanto ajudam quanto comprometem a promoção de um escritor que ainda pode publicar novos textos.

Publicado en OGlobo

 

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